Felipe Athayde Lins de Melo
Doutor em Sociologia (UFSCar), membro do Laboratório de Gestão de Políticas Penais (UNB) e autor do livro “A burocracia penitenciarista: estudo sobre a configuração da gestão prisional no Brasil” (Brazil Publishing, 2020)
Fevereiro de 2016. A partir de mobilização do Conselho Regional de Técnicos em Radiologia da 7ª Região (CRTR Alagoas/Sergipe), audiência pública realizada em Aracaju discute a importância de contratação de profissionais especializados para manuseio dos equipamentos de inspeção eletrônica que utilizam radiação ionizante em unidades prisionais, tais como os aparelhos de scanner corporal e de raios-X. Na ocasião, buscava-se exigir o cumprimento da Lei Estadual 8.023/15, que determina “que só profissionais com a devida qualificação podem operar equipamentos de radiologia”. O cumprimento da legislação exigiria a incorporação de uma nova categoria profissional ao corpo de servidores penais e obrigaria a Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado, órgão responsável pela gestão prisional, a realizar concurso público para uma função jamais prevista no bojo da burocracia penitenciarista. Após forte reação governamental, de diversas agências estatais e dos demais servidores penais, o movimento arrefeceu e atualmente são comuns, em diferentes unidades federativas, relatos de que não são respeitados os limites de exposição individual à radiação produzida pelos equipamentos, os quais, conquanto possuam sistema de registro de passagem individual, de modo a evitar que uma pessoa privada de liberdade, familiar ou mesmo servidor penal seja exposta a índices prejudiciais de radiação, são facilmente burlados por técnicas próprias do primado da “segurança” que vige nas prisões – basta alterar o número de registro da pessoa presa por um número aleatório e cadastrar como “preso provisório” para que o equipamento “libere” a passagem da pessoa. Os riscos à saúde não importam.
Abril de 2017. Tentando conter o uso indevido de armas de fogo no interior das unidades prisionais pelos servidores penais, o gestor prisional de um estado da região Norte do país institui uma série de procedimentos para regulação do acesso às armas e munições. Local de guarda específica, portaria regulando quem, quando e como retirar e devolver as armas, adoção de armamento menos letal. Os guardas reagem e passam a utilizar armamento pessoal. O Secretário insiste no controle de armas. Institui rigorosos procedimentos de revista no acesso aos estabelecimentos prisionais. Instala câmeras de vigilância nas áreas em que se realizam tais procedimentos. As câmeras são danificadas; os procedimentos não são cumpridos. O servidor de plantão, ao receber aquele que o substituirá, o cumprimenta de arma na mão. Mesmo que não sejam amigos, enxergam-se iguais: para “segurança” de todos da corporação, os regulamentos não podem ser cumpridos. É preciso estar atento e armado para enfrentar a bandidagem, essa ontologia que nada tem a ver com o cumprimento ou não da lei.
Maio de 2022. Sem grande repercussão midiática, a Federação Nacional dos Policiais Penais Federais anuncia a paralisação de atividades nas penitenciárias federais em função “da iminente regulamentação da Polícia Penal Federal ser feita sem a devida valorização, com perda real nos salários dos servidores policiais”. Dentre as reivindicações, a substituição dos cargos de chefia e direção que são ocupados por profissionais de outras carreiras que não sejam do quadro próprio DEPEN, com a manifestação expressa, e em referência à atual diretora geral, de que “lugar de policial federal é na Polícia Federal”.
Distantes no tempo, os eventos apontam para processos de mais longa duração e que evidenciam uma perniciosa especialização da gestão prisional no Brasil, cujo ponto de inflexão se deu com a aprovação da Emenda Constitucional Nº 104, de 04 de dezembro de 2019, que criou as “polícias penais federal, estaduais e distrital”. De mau gosto e má redação, como boa parte da recente produção legislativa, o texto vem sendo comemorado por parcela de servidores penais pela suposta valorização profissional que lhes seria promovida, ao equiparar “os atuais agentes penitenciários e [profissionais] dos cargos públicos equivalentes” (Art. 4º) aos profissionais das polícias civil e militar e do corpo de bombeiros.
Reconhecendo-se as péssimas condições de trabalho e remuneração que enfrentam os profissionais dessas corporações, e para além do primeiro plano de ganhos objetivos, dentre os quais se destacam o enquadramento da nova polícia no regime previdenciário especial e a necessidade de concurso público para provimento de cargos, o que justificaria o entusiasmo de parte da categoria de servidores penais com sua nova organização?
Volto aos eventos que abrem este texto: a recusa à incorporação de outros profissionais – “técnicos de radiologia!”, ririam os policiais -, a resistência a técnicas de gestão não ostensivas e, por fim, o corporativismo ora declarado são feixes de visibilidade de uma perspectiva de “segurança” que subordina quaisquer outros saberes, práticas e profissões ao exercício cotidiano da repressão, da força e da construção de uma identidade assentada sobre a máxima de que “só o guarda sabe falar de cadeia”, ampliando a opacidade de um sistema sempre avesso à participação social e às luzes que desvelem os mecanismos por meio dos quais ele cresce continuamente, apesar de toda a violência que representa para as pessoas privadas de liberdade, para seus familiares e, também, para os próprios servidores penais.
Numa perspectiva voltada à garantia de direitos e racionalização do uso da prisão, a nova categoria policial e o percurso de formação de sua identidade vêm se somar a outros retrocessos que denotam a colonização da gestão prisional pelas práticas policiais e, em especial, pelas técnicas de gestão militarizadas.
Passo importante para essa regressão se deu com a criação do Sistema Penitenciário Federal, que, ao incorporar, por meio da a Lei 13.769/2018, a função de “coordenação e supervisão dos estabelecimentos penais e de internamento federais”, expandindo com isso a previsão original da Lei de Execução Penal de que cabia ao DEPEN funções de apoio técnico, fomento de políticas e fiscalização dos sistemas penitenciários estaduais e Distrital, deu novo sentido ao objetivo primeiro da execução penal de “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (Lei 7.210/84 – Art. 1º), permitindo o surgimento de diferentes “escolas” de gestão prisional.
Esse movimento, contudo, não se deu de forma isolada. Desde o surgimento do Regime Disciplinar Diferenciado – RDD – e da inauguração da Penitenciária de Presidente Bernardes, no interior de São Paulo, a especialização de quadros de agentes penitenciários por meio da incorporação de práticas militarizadas impulsionou transformações no bojo da primeira Secretaria de Administração Penitenciária do país. Concebida como resposta ao Massacre do Carandiru, a criação da SAP-SP, em 1993, trazia a perspectiva de profissionalização da gestão prisional, num processo que envolveria a revisão dos procedimentos de custódia, a qualificação das áreas administrativas e a contratação de profissionais especializados para a oferta de assistências e serviços. Passados menos de dez anos, a expansão do aparato prisional paulista já jogara por terra as promessas de profissionalização dessas três áreas e, anos depois, a criação do GIR – Grupo de Intervenção Rápida, consolidaria a prática da contenção ostensiva e violenta como contraface da entrega do controle dos ambientes prisionais ao Primeiro Comando da Capital.
Contribuindo com a expansão desses grupos especializados, hoje presentes nas 27 unidades federativas, novo modelo de gestão prisional seria impulsionado a partir da Diretoria Penitenciária de Operações Especiais – DEPOE, instância atualmente subordinada à Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal. Criada em março de 2000 e instalada no Complexo Penitenciário da Papuda, a DEPOE atualizou técnicas de contenção de conflitos, de segurança de autoridades e de escolta de pessoas presas, transformando-as em procedimentos de gestão do cotidiano dos estabelecimentos prisionais a partir da premissa de que toda pessoa presa é uma ameaça potencial, sobre a qual, portanto, devem incidir procedimentos padronizados de intimidação, controle, prevenção de riscos e produção de privilégios. Adotados pela gestão prisional de diferentes estados brasileiros, os procedimentos desenvolvidos a partir da DEPOE-DF foram relatados como produtores de “uníssona denúncia sobre rotinas de tratamento degradante pela restrição de insumos básicos para a custódia de pessoa privada de liberdade”, de “constrangimentos ilegais”, de “atos violentos fora de qualquer tipo de normativas e procedimentos, configurados em atos de tortura” e de “aplicação de falsos procedimentos que atentam contra o Estado de direito”.
A criação da polícia penal é um passo na reprodução de um dispositivo notavelmente reconhecido como descumpridor de suas promessas e finalidades legais. Reforçando a proeminência de uma única categoria, todos os servidores que seriam indispensáveis para uma gestão prisional minimamente condizente com a legislação nacional e compromissos internacionais tornam-se ainda mais deficitários e dependentes, tendo sua atuação restrita a procedimentos precários e previamente autorizados por aqueles que se intitulam autoridades do “fazer prisional”.
Face ao fato, restam algumas preocupações, que podem indicar caminhos para a regulamentação da EC 104 nos entes federativos: como ficam as demais profissões que devem fazer parte do campo das políticas penais e prisionais? Quem serão os profissionais dos demais serviços penais, que não se resumem aos estabelecimentos de privação de liberdade? Quem fará e como se dará o controle externo das atividades dessa nova polícia? Como serão integradas ou articuladas as instâncias de gestão dessas polícias às demais instâncias de Administração Penitenciária?