Múltiplas Vozes 06/09/2023

A interface entre Saúde e Segurança Pública diante da subnotificação das violências

À medida que os dados destacam, ano após ano, os abusos sexuais contra crianças e adolescentes que ocorrem no âmbito doméstico e, neste mesmo ambiente, violências outras contra meninas e mulheres, a preocupação pública acerca das subnotificações dos casos aumenta

Compartilhe

Juliana Lemes da Cruz

Doutora em Política Social-UFF, Cabo na PMMG e Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A ideia de que a família constitui estrutura de proteção e acolhimento que tem na residência o seu abrigo físico mais característico tem sido fortemente contestada. À medida que os dados destacam, ano após ano, os abusos sexuais contra crianças e adolescentes que ocorrem no âmbito doméstico e neste mesmo ambiente violências outras contra meninas e mulheres, a preocupação pública acerca das subnotificações dos casos aumenta. Isso porque parcela significativa da população tem vivenciado realidades silenciadas.

Como se sabe: onde não há dado, sugere-se que não há evidência de que um problema exista. Se o problema não existe, não há o que se resolver. Logo, desnecessário orçamento ou formulação de ações estratégicas, pois inexistem elementos que as justifiquem.

Assim, parece apropriado o compartilhamento de informações intersetores como forma de responder, tanto às demandas do campo da saúde, quanto as do campo da segurança pública. Nesse sentido, a categoria dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que constitui parte fundamental da Estratégia Saúde da Família (ESF), são os que dispõem da mais ampla capilaridade de base assistencial e preventiva, dentre todos os serviços públicos oferecidos à população brasileira. Recentemente, os ACS foram reconhecidos pelo Governo Federal como profissionais de saúde (Lei nº 14.536/2023). Em municípios menores e/ou com extensa área territorial, são esses profissionais as principais referências das comunidades em que atuam, tendo o acesso e a confiança legitimados pela população assistida.

Esta constatação importa se considerarmos os dados das violências que ocorrem no ambiente das residências e que foram noticiadas aos órgãos de segurança pública. Constitui um exemplo emblemático o recorde de registros de violência sexual/estupros de crianças e adolescentes em 2022, conforme destacou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, que ainda alerta para a subnotificação, que é a regra nesses casos. Pelo menos um terço das vítimas de estupro de vulnerável registradas em 2022 tinham entre 10 e 13 anos de idade. No bojo das violências, destacam-se também as provocadas contra meninas e mulheres, que englobam, além da violência sexual, a física, a patrimonial, a moral e a psicológica, conforme descrito na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

Segundo dados do Relatório Diagnóstico sobre Violência contra as Mulheres produzido pela Polícia Civil de Minas Gerais – 2022, 89% dos feminicídios foram de mulheres que não tinham Medida Protetiva de Urgência. Nessa direção, dados do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo – 2020, informou que em 97% dos feminicídios do estado, as vítimas não contavam com MPU. Sob escala micro, em pesquisa realizada por mim e publicada em formato de tese doutoral sobre feminicídios íntimos, 86% das vítimas entre os anos de 2016 e 2020 nunca haviam registrado um único boletim de ocorrência policial noticiando violências que precederam seus assassinatos. Diante disso, constitui medida de urgência a formulação de estratégias capazes de responder ao problema da invisibilidade dos casos. Como os abusos e toda a variabilidade de violências acontecem no ambiente doméstico e têm como parte autora pessoas da família ou conhecidos, enfrentar o problema demanda estratégias inovadoras. E nada mais conveniente que aproveitar a capilaridade do nível da Atenção Básica à Saúde.

Como exemplo, uma iniciativa local, desenvolvida no município de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, pode ser uma alternativa para fazer frente às subnotificações da violência doméstica por meio da utilização de ferramenta digital projetada junto à plataforma e-SUS, reconhecida e em uso pelos ACS.

São três as motivações objetivas para a criação da iniciativa que se vincula à resistência dos profissionais em realizar as notificações sobre violências: 1) diante da ausência de informações que deveriam estar sendo coletadas, levantou-se questionamento sobre a representação da realidade das famílias atendidas – que pode refletir a invisibilidade dos casos; 2) em razão do risco à integridade física do ACS –, como por exemplo, houve episódio em que um morador correu atrás de um agente com um facão em punho; e 3) pelo temor de perderem seus empregos, uma vez que há norma federal que orienta sobre a região geográfica em que o profissional deve cumprir, dentre outras tarefas, o fortalecimento do vínculo com as famílias.

O coordenador da Atenção Básica do município, o Sr. Joaniz Lopes de Oliveira, afirmou que o trabalho poderá ser exercido de forma rápida, simples e segura, tanto para o profissional da ponta quanto para o gerenciador da informação.

Após testes nas áreas urbana e rural, o Projeto Égide está pronto para ser manipulado pelos 351 agentes do município. Os resultados preliminares serão conhecidos em alguns meses. A equipe desenvolvedora da iniciativa afirmou que os dados serão gerados a partir da plataforma e-SUS, ferramenta de trabalho diária dos ACS. Os dados coletados serão acessíveis, tão somente, ao gestor, que tem a possibilidade de acessar o lançamento das informações em tempo real, se ambos conectados à internet.

Usando um esquema de cores e numeração para codificar os agravos à saúde, a equipe de analistas criou esse instrumento gerencial que permitirá um melhor monitoramento dos territórios acerca das notificações ou sobre a ausência delas. Cria também uma proteção para o profissional e permite que esses dados sejam compartilhados, inclusive, com o setor da segurança pública, subsidiando o planejamento das ações preventivas em localidades onde a polícia ainda não chega.  Os dados atuais dão conta de que, em nível local, os ACS visitam mensalmente cerca de 87 mil pessoas.

Durante o preenchimento de informações na plataforma, o ACS poderá inserir o dado acerca de possíveis violências utilizando um código no próprio ambiente virtual de uso rotineiro, e já não precisa informar seu nome na ficha de notificação de preenchimento manual, entregue à sua chefia direta no ato da notificação.  Destaca-se que o sistema foi testado em todos as Unidades de Saúde (Estratégia Saúde da Família – ESF) do território e, tendo êxito no que se pretende, constituirá importante alternativa à interface entre Saúde e Segurança Pública.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES