Múltiplas Vozes 10/04/2025

A (in)segurança das decisões judiciais penais no Brasil

É fundamental que sejam aprimorados os mecanismos de controle e transparência das decisões judiciais para que se obtenha um padrão consistente de tomada de decisão em matéria penal

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, Professor da Escola de Direito da PUCRS, pesquisador do CNPq e do INCT-InEAC

No debate público sobre criminalidade, violência e justiça penal no Brasil, uma expressão se repete como bordão: “a polícia prende e a justiça solta”. Essa frase, de forte apelo midiático e popular, alimenta uma percepção de impunidade e de ineficácia das instituições de justiça. No entanto, ela ignora que a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva não é automática nem discricionária, estando condicionada a requisitos legais previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal e à observância de garantias constitucionais. Além disso, o relaxamento da prisão é medida obrigatória quando presentes as hipóteses de ilegalidade da prisão em flagrante.

Nesse contexto, avançaram significativamente nas últimas décadas as pesquisas empíricas que analisam a atuação do Judiciário em matéria penal. Estudos como os de Laura Hypolito[1] e Marcelo Semmer[2] examinam a aplicação do chamado tráfico privilegiado, relacionando as decisões com a mentalidade dos magistrados. Marcelo da Silveira Campos[3], por sua vez, investiga os padrões de diferenciação entre usuários e traficantes, demonstrando como as interpretações judiciais oscilam conforme variáveis como gênero, cor, local de moradia, quantidade e tipo de droga apreendida, etc. As pesquisas de Fernanda Vasconcellos[4] e Manuela Abath[5], por outro lado, abordam a prisão preventiva, evidenciando como a sua manutenção pelas Câmaras Criminais em recursos de habeas corpus ainda é marcada por generalizações, estigmas e uso excessivo.

Esses trabalhos mostram que, apesar da existência de regras jurídicas claras, há um espaço significativo para subjetividade e variação entre decisores. Esse problema é abordado de maneira contundente e inovadora no artigo recentemente publicado, “Noise in Judicial Decision-Making: A Research Note”[6]. O estudo analisa uma situação única: candidatos a juiz na Polônia, em um exame de sentença penal de alto impacto, julgam exatamente o mesmo caso com base em um processo simulado detalhado. A amostra inicial consistia em 271 candidatos, dos quais 196 eram juízes em formação. Esses juízes em formação haviam concluído um programa seletivo de três anos de formação, que incluía atuação supervisionada em tribunais regionais. Os outros 75 candidatos tinham ocupado cargos inferiores na magistratura (por exemplo, como assistentes judiciais) por pelo menos quatro anos.

Os resultados revelam uma enorme variação nas sentenças aplicadas, tanto no tipo quanto na quantidade da pena. Mesmo diante de uma situação idêntica, alguns candidatos aplicaram multas, outros, serviço comunitário e outros, prisão (suspensa ou não), com durações e valores muito distintos. O estudo conclui que, na ausência de diretrizes vinculantes, o julgamento penal se assemelha a um jogo de azar, e que até mesmo os mais bem avaliados no exame reproduzem o mesmo nível de inconsistência decisória.

Os autores realizam ainda uma discussão metodológica relevante a respeito dos limites dos estudos anteriores sobre decisões judiciais em matéria penal. Segundo eles, muitas pesquisas previamente elaboradas utilizaram cenários hipotéticos curtos, com pouca informação e aplicados em contextos de baixa pressão e com amostras reduzidas e heterogêneas, dificultando a distinção entre ruído e variação sistemática (como os efeitos da experiência). Em contraste, o estudo que apresentam analisa uma situação de alta validade ecológica, com um caso realista, julgamento individualizado e decisão de alta relevância para a carreira dos participantes, oferecendo uma contribuição metodológica robusta para a mensuração do ruído decisório.

A discussão dos resultados da pesquisa enfatiza que esse ruído decisório não se explica pela falta de formação ou competência dos candidatos, já que todos passaram por um rigoroso processo de seleção e formação prévia. A inconsistência ocorre dentro dos limites da discricionariedade legal, sendo mais intensa justamente onde o direito permite interpretações diversas. O estudo também alerta que esse ruído favorece a atuação de fatores extralegais, como emoções ou eventos locais cotidianos. Além disso, ressalta que, quando a distribuição das penas é inconsistente, alguns infratores recebem penas desproporcionais e outros são punidos de forma branda demais, comprometendo tanto a justiça quanto a efetividade preventiva do sistema. Os autores sugerem que, embora o ruído possa ser reduzido com a experiência, ele só será efetivamente enfrentado com reformas institucionais, como auditorias de inconsistência, uso de evidências empíricas e diretrizes mais claras para a atividade decisória. Podemos acrescentar a importância do duplo e do triplo grau de jurisdição, inclusive para a revisão da dosimetria da pena.

Nesse sentido, é fundamental a construção de uma política judiciária nacional que produza maior previsibilidade das decisões judiciais em matéria penal. Tal política deve ser pautada em mecanismos coordenados pelo Conselho Nacional de Justiça, como o monitoramento das decisões, a elaboração de estudos estatísticos, o incentivo à uniformização jurisprudencial e a promoção de formação continuada. Ao mesmo tempo, é essencial reconhecer que a atividade judicial envolve interpretação e aplicação das normas a casos concretos, o que exige um mínimo de discricionariedade pelo juiz, sempre dentro dos limites estabelecidos em lei e orientada por princípios constitucionais.

No caso brasileiro, essa tarefa se torna ainda mais urgente diante de um histórico de forte traço decisionista no Judiciário, caracterizado por baixos níveis de fundamentação das decisões, falta de padronização jurisprudencial e marcada divisão ideológica no campo jurídico. Observa-se uma clivagem entre uma visão mais punitivista, que atribui ao Judiciário a função de agente ativo no combate à criminalidade, e outra mais garantista, preocupada com a estrita observância do devido processo legal e das garantias individuais. Essa divisão contribui para a heterogeneidade das decisões judiciais, agravando a insegurança jurídica e dificultando o papel do sistema penal na emissão de sinais claros à sociedade.

A partir dessas contribuições, é possível afirmar que a falta de um padrão consistente de tomada de decisão em matéria penal é uma realidade tanto no Brasil quanto em outros contextos. Tal inconsistência afeta a segurança jurídica e mina a legitimidade do sistema penal. Por isso, é fundamental que sejam aprimorados os mecanismos de controle e transparência das decisões judiciais, com formação contínua dos magistrados, adoção de auditorias de inconsistência das decisões, uso sistemático de dados empíricos e construção de diretrizes mais objetivas e vinculantes para o julgamento penal. A justiça penal só poderá cumprir um papel mais amplo que a mera imposição de penas se for capaz de proporcionar previsibilidade e coerência, emitindo sinais claros à sociedade sobre as condutas criminalizadas e as consequências concretas da transgressão, dentro dos limites legais e das margens estabelecidas para a individualização da resposta penal.

REFERÊNCIAS
[1] HYPOLITO, Laura Girardi. Os Dentes da Engrenagem: o papel dos Desembargadores do Rio Grande do Sul nas incriminações por tráfico privilegiado. 2024. Tese (Doutorado) – PUCRS, Porto Alegre, 2024. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/10842/2/Laura%20Hypolito_TESE.pdf. Acesso em: 02 abr. 2025.
[2] SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel dos juízes no grande encarceramento. 2019. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-21082020-032044/. Acesso em: 02 abr. 2025.
[3] CAMPOS, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. 2015. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-31072015-151308/pt-br.php. Acesso em: 02 abr. 2025.
[4] VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. A prisão preventiva como mecanismo de controle e legitimação do campo jurídico. 2008. 178 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/4657. Acesso em: 02 abr. 2025.
[5] VALENÇA, Manuela. Julgando a liberdade em linha de montagem: um estudo etnográfico do julgamento dos habeas corpus nas sessões das câmaras criminais do TJPE. 2012. 134 f. Dissertação (Mestrado em direito) – Programa de Pós-graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/10433. Acesso em: 02 abr. 2025.
[6] UHL, Andrzej e PICKETT, Justin. Noise in judicial decision-making: a research note. Disponível em: https://www.crimrxiv.com/pub/88emhqng/release/1. Acesso em: 02 abr. 2025.

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