Múltiplas Vozes 30/08/2023

A importância da atenção às pessoas egressas do sistema prisional: a experiência do Reflexões da Liberdade

O mais interessante no Reflexões da Liberdade é a narrativa e a vivência de superação da condição de vítima do sistema, e o despertar da consciência e a libertação das grades mentais para a vivência de maneira autônoma e construtiva

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Emerson Ferreira

Psicólogo, membro do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo. Viveu preso em sua juventude, entre 2007 e 2012, e fundou o Reflexões da Liberdade em 2017

O ano é 2023, e cada dia que passa estamos mais envolvidos com as novas tecnologias, cujas funções têm nos tornado mais eficientes e eficazes em nossos trabalhos, assim como também têm nos gerado grandes ansiedades e sofrimentos psíquicos. Ainda assim, há outras realidades completamente opostas. Famílias e gerações em condições precárias, faltas de todos os tipos, moradias degradadas – isso quando se tem moradia – faltas de condições para atender as demandas mais básicas do viver, como por exemplo a possibilidade de viver nutrido, alimentado, limpo, agasalhado, pessoas que vivem abarrotadas em barracos de madeira à beira de córregos, pessoas que vivem reagindo às dificuldades das defasagens do desenvolvimento humano e que patinam no progresso pessoal e coletivo; faltas de todos os modos, falta de perspectiva de vida, falta de exemplo, falta de condições para resetar o jogo e começar de novo; o novo nunca existiu, pois essas pessoas estão presas em grades mentais que aprisionam a possibilidade da realização de feitos que elevam a vida.

Ainda assim, boa parte se esforça, segue o padrão, vai para as escolas, finge que aprende e segue sendo empurrada de série em série, apenas frequentando as escolas, logo consegue um bico, decide largar os estudos e se lança no mercado de trabalho com baixa qualificação, recebendo então baixas remunerações, não se impondo com suas capacidades a ponto de jogar o jogo em níveis mais vantajosos.

Nesse mesmo contexto há aqueles que enxergam o jogo e percebem a importância dos recursos financeiros e os buscam a qualquer custo, mesmo que o custo seja a própria vida, mesmo que o custo seja viver na ilicitude, mesmo que para obter o destaque das competências não valorizadas pelo mercado de trabalho, ou pela falta de um diploma, tenham que investir tais competências na criminalidade. Nesse caso, estamos falando de uma grande rede organizada e articulada com ações e planos claros e ousados na execução de ações absurdamente lucrativas, com muitas conexões com o mercado formal.

Em 2023 não precisamos mais reprimir a consciência da existência de organização criminosa. Estamos vendo isso ser estampado em jornais, em como o dinheiro público sustenta e desenvolve ações tipificadas crimes no código penal. São ações que, se você tem um mandato municipal, estadual ou federal, permanece no jogo. Se tem o tal foro privilegiado, você burla o sistema, coloca as leis em benefício próprio e segue a vida desfrutando dos lucros dos desvios e dos crimes cometidos. A busca para se vestir, ou se manter, nesse poder instituído frequentemente pode envolver acordos com os poderes paralelos, nos quais esses são buscados para negociar a entrada em territórios para a realização de campanhas eleitorais.

Do outro lado, existe a massa carcerária: milhares de jovens que se iludiram com a vida material dos tais negociadores, vendedores de substâncias ilícitas, assaltantes profissionais que já abandonaram suas carreiras e vivem dos negócios. Jovens que pelo desejo cru pelo dinheiro acabam entregando suas vidas às drogas e aos prazeres desmedidos sem planejamento, e sem estrutura psicológica de futuro. Na grande maioria das vezes, esses jovens são postos em cumprimento de pena de privação de liberdade sem nem reconhecer ou descobrir seu potencial. Eles desconhecem a disciplina, desconhecem o planejamento de longo prazo, são imediatistas, mas eles têm algumas competências que se destacam, muitos são completamente dispostos a transformar suas realidades, mesmo que para isso tenham que vender drogas ou fazer assaltos em saídas de banco, ou seja lá qual for a atividade que possibilite mais dinheiro circulando. Muitos desses jovens são filhos daqueles que estão abarrotados dentro dos barracos de madeira, e estão decididos que não vão passar a vida na beira do córrego, não vão ficar à margem, então eles têm muita disposição para arriscar suas vidas em ações imediatas que parecem lucrativas, mas que no geral tiram até sua liberdade.

No Brasil temos centenas de milhares de jovens nessas condições. O que faremos com eles? Vamos mantê-los trancados nas condições carcerárias que acabam por revoltar ou expandir as possibilidades de diversificar as ações criminosas de maneira mais organizada? Vamos decretar e determinar que tais jovens vivam uma vida de entrada e saída nos cárceres brasileiros, fazendo mais vítimas na sociedade? Muitos vão dizer que sim, que isso é pouco, mas, sinceramente, prender pessoas não resolve a questão da Insegurança Pública.

A importância da atenção às pessoas egressas do sistema prisional vem justamente no sentido de apoiar a retomada da vida de maneira lícita e menos tortuosa, tendo em vista que os mesmos, em cumprimento de pena, acabam na maioria das vezes flutuando no tempo, sem a oportunidade de descobrir ou desenvolver suas competências. Ao sair para a tal liberdade, permanecem mais presos do que na prisão, presos nas dificuldades, presos nos preconceitos, presos nas burocracias de restituir seus direitos de cidadão, e isso acaba por retroalimentar o círculo vicioso da criminalidade.

O trabalho com egressos do sistema prisional deixa claro que as desigualdades sociais vivenciadas antes do cárcere e que se potencializam após o cárcere só dificultam a vida dessas pessoas. Nesse contexto, o Reflexões da Liberdade[1] se dedica a criar caminhos possíveis para melhorar a vida de milhares de pessoas dentro e fora do cárcere.

Atualmente, o Reflexões da Liberdade possui um acordo de cooperação com a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo[2] para a implantação de projetos de desenvolvimento de competências emocionais, cultura de paz, oficinas de facilitação e mediação de conflitos, acolhimento, desenvolvimento, treinamento e acompanhamento de pré-egressos e pessoas egressas do sistema prisional, e de suas famílias, além de ações de reintegração social, bem desenvolvidas no âmbito do programa de atenção ao egresso e família (PAEF), auxílio à restituição dos direitos de cidadania dessas pessoas.

Tal acordo permite que a experiência de uma vida transformada e ressignificada ecoe com os projetos do Reflexões da Liberdade, com objetivos de comum acordo entre as partes e que colaboram para a retomada da dignidade dos que estão na prisão e que posteriormente se tornarão egressos.

O Reflexões da Liberdade acabou de lançar um relatório sobre as atividades de 2022, relatório que demostra como podemos melhorar as condições de vida dessas pessoas, antes durante e depois do cárcere.

É importante destacarmos alguns dados que ilustram os desafios que precisam ser enfrentados por essas pessoas. De uma amostra de 112 pessoas atendidas pelo Reflexões da Liberdade, 57% cumpriram pena em celas superlotadas. 76% delas não tiveram acesso à água quando necessitavam, enquanto 59% não tiveram acesso à energia elétrica. 34% declararam que, durante todo o cumprimento de sua pena, não tiveram acesso à luz natural. Torturas e maus tratos foram vivenciados por quase 70% das pessoas atendidas. O contato com familiares ficou restrito a correspondências para cerca de 19% dos entrevistados e mais de um quarto deles cumpriu pena a mais de 400 quilômetros de distância da cidade onde vivia. O relatório pode ser acessado aqui: A oportunidade é a esperança – Reflexões da Liberdade (reflexoesdaliberdade.org)

O mais interessante no Reflexões da Liberdade[3] é a narrativa e a vivência de superação da condição de vítima do sistema, e o despertar da consciência e a libertação das grades mentais para a vivência de maneira autônoma e construtiva, o desejo e o planejamento estratégico sendo seguidos diariamente na execução do bom trabalho, que gera resultados.

[1] O Reflexões da Liberdade foi considerado uma das 50 melhores organização da sociedade civil brasileira segundo um ranking suíço thedotgood. Disponível em: https://thedotgood.net/ranking/2023-brazil-50-sgos/

[2] Processo: SAP-PRC-2022/16938. Parecer: CJ/SAP Nº 323/2022.

[3] Faça parte de nossa organização, seja um apoiador. https://reflexoesdaliberdade.org/doe-aqui/

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