A captura simbólica das polícias brasileiras pelos discursos religiosos‑conservadores e de extrema‑direita: riscos para a democracia
Se a sociedade não reagir com firmeza, poderemos assistir à consolidação de um complexo policial‑religioso‑autoritário que, sustentado por legitimidade eleitoral e amparo espiritual, minará as instituições por dentro
Roberto Uchôa
Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
A ascensão simultânea do neopentecostalismo e da extrema‑direita no Brasil inaugurou um ciclo inédito de sobreposição entre moral religiosa, militarismo e política de segurança. A interpenetração desses domínios tornou‑se particularmente visível dentro das polícias, sobretudo nas polícias militares estaduais, que concentram quase meio milhão de profissionais armados. Embora a presença de capelanias seja antiga, o que se observa desde meados dos anos 2010 é um salto qualitativo. Não se trata apenas de prestação de assistência espiritual, mas de um processo de formação de identidade corporativa tutelado por pastores e líderes políticos que convertem valores confessionais em doutrina operacional e visão de mundo.
Diversos fatores favoreceram esse quadro. Primeiro, o vácuo de políticas sociais provocado por restrições orçamentárias empurrou a segurança pública para o centro do debate eleitoral, criando terreno fértil para atores que prometem “resgatar” a ordem a qualquer preço. Segundo, a própria estrutura militar das polícias militares, hierárquica, fechada à sociedade civil e marcada por rituais de coesão, facilita que narrativas maniqueístas prosperem sem contestação interna. Terceiro, o bolsonarismo, ao amalgamar símbolos cristãos, nacionalismo e culto às armas, ofereceu um repertório pronto que passou a circular em grupos de WhatsApp institucionais, tornando‑se parte do cotidiano dos quartéis. Reportagem da revista Piauí sobre cultos e jejum de oficiais em batalhões é ilustrativa: ali, a tropa não se enxerga apenas como agente do Estado, mas como “escolhida” para uma guerra espiritual contra o mal encarnado no crime e, por extensão, em opositores ideológicos.
Esse fenômeno ganha densidade política quando se converte em votos. O Instituto Sou da Paz detectou um recorde de candidaturas de policiais nas eleições municipais de 2024, movimento descrito como “policialismo eleitoral”. Esses candidatos chegam ao parlamento sob a promessa explícita de fortalecer a corporação, flexibilizar regras de uso da força e ampliar o porte de armas. O resultado é um círculo virtuoso para o conservadorismo, a lei, antes instrumento de limitação do poder policial, passa a ser moldada por quem carrega a mesma farda. No âmbito federal, as bancadas da bala e da Bíblia firmaram alianças que bloquearam projetos de controle de armamentos e engavetaram propostas de desmilitarização, evidenciando como a captura simbólica transborda para a arena legislativa.
O estopim que tornou visível o perigo institucional foi o ataque golpista de 8 de janeiro de 2023. Relatórios do Gabinete de Segurança Institucional e da Polícia Federal descrevem tanto omissão quanto conivência ativa de segmentos da Polícia Militar do Distrito Federal, alguns dos quais entoavam cânticos religiosos entre os invasores. A lacuna de comando naquele domingo é reveladora: quando a identificação ideológica se impõe sobre a disciplina constitucional, a cadeia de autoridade civil se desfaz. A democracia depende, no limite, da obediência das armas ao veredito das urnas; ao negar‑se a reprimir os golpistas, parcelas da tropa sinalizaram que reconhecem uma autoridade transcendental (Deus, pátria ou líder messiânico) acima do Estado laico.
No plano cotidiano, a captura manifesta‑se em práticas seletivas de policiamento. Estudos qualitativos com cadetes da Universidade de Brasília mostram que a figura do “inimigo” é construída por critérios morais; moradores de rua, usuários de drogas, defensores de pautas identitárias ou religiões afro‑brasileiras são percebidos como ameaças não apenas legais, mas espirituais. O passo seguinte é o afrouxamento do filtro da legalidade; se o oponente é visto como demoníaco, a violência letal converte‑se em exorcismo.
Um episódio recente, ocorrido em abril de 2025, ilustra o grau de distorção dessa moralidade de caserna: após a morte do Papa Francisco, mensagens em tom de deboche circularam em grupos de WhatsApp de policiais militares do Pará, celebrando a morte do pontífice com frases como “menos um comunista na Terra” e “já vai tarde”. O conteúdo motivou a abertura de sindicância pela corregedoria da PM, que declarou não compactuar com desvios de conduta. Ainda que se trate de manifestação individual, o caso revela uma disposição preocupante: mesmo o líder máximo da maior tradição cristã do mundo é convertido em inimigo simbólico quando não se alinha ao ethos político dominante dentro das corporações. Trata-se de uma inversão radical, deixando a fé de ser expressão espiritual para se tornar instrumento de hostilidade ideológica.
A literatura internacional sobre securitização moral fornece lentes úteis para a compreensão desses processos. Buzan, Wæver e de Wilde (1998) demonstram que, ao transformar um tema em ameaça existencial, o Estado legitimará medidas excepcionais. No Brasil, a moral evangélica faz esse papel: crimes contra a família, contra “pessoas de bem” ou contra “valores cristãos” são elevados à categoria de anomia total, justificando o emprego ilimitado da força. À securitização soma‑se o populismo punitivo, conceito que articula a noção de justiça à antipolítica. O policial deixa de ser mero executor da lei e se torna o braço armado do “senso comum honesto”, dispensando intermediação judicial. Daí não apenas o uso ampliado das armas, mas a recusa crescente a mecanismos de controle externo, sejam corregedorias, ouvidorias ou Ministério Público e até mesmo o uso de câmeras corporais.
A convergência com a extrema‑direita opera em três níveis. No simbólico, ambos compartilham a retórica do “nós contra eles”, fortalecendo a gramática do inimigo interno. No programático, defendem agendas de endurecimento penal, armamentismo e combate a temas tidos como “ideologia de gênero”. No organizacional, articulam campanhas políticas e redes de financiamento que abastecem templos, influenciadores e associações de classe. O resultado é uma rede de poder que combina capital religioso, eleitoral e bélico, apta a obstruir qualquer tentativa de reforma que ameace sua hegemonia.
Os efeitos sobre a democracia são profundos. Ao se infiltrar em organizações dotadas de monopólio da violência legítima, esse movimento minimiza o custo da contestação de decisões civis. Não se trata mais de lobby tradicional, mas de potencial veto armado às políticas que frustrem sua visão moral do mundo. A política deixa de ser espaço de negociação para converter‑se em arena de redenção e, como recorda Carl Schmitt, quem define o inimigo decide sobre a exceção. No Brasil de 2025, as audiências públicas sobre câmeras corporais evidenciam a dificuldade de implantação de sistemas de supervisão imparciais; associações policiais evocam “autonomia de culto” para rejeitar sensores que captem áudio enquanto repetem slogans bolsonaristas contra “advogados de bandidos”.
Vencer esse impasse exige estratégias multissetoriais. A primeira é fortalecer controles externos independentes, blindados contra pressões corporativas. A segunda envolve redirecionar a formação policial para uma ética laica de direitos humanos, na qual liberdade religiosa seja direito individual e não diretriz institucional. A terceira passa pela diversificação interna: mulheres, negros e não cristãos precisam ocupar posições de comando para romper a homogeneidade ideológica que facilita a captura. Há precedentes: experiências de polícia comunitária em Pernambuco e no Ceará, capitaneadas por oficiais civis, reduziram letalidade sem sacrificar autoridade, prova de que a profissionalização não enfraquece a corporação, mas lhe devolve legitimidade.
No plano cultural, é preciso disputar narrativas nas mesmas plataformas nas quais a captura avança. Projetos audiovisuais que retratem policiais defendendo a Constituição e não o “pecado zero” podem ressignificar heroísmos. Iniciativas de mediação comunitária que envolvam terreiros, coletivos LGBTQIA+ e conselhos de segurança ampliam o repertório ético da tropa, mostrando que a função policial é proteger a pluralidade democrática, não um conjunto particular de valores.
A cooptação das polícias brasileiras por discursos religioso‑conservadores e de extrema‑direita não representa fenômeno periférico, mas epicentro de riscos à democracia. Quando armas se unem a convicções de salvação e ao populismo punitivo, o projeto republicano de neutralidade se desfaz, e o Estado se transforma em instrumento de cruzada moral. Se a sociedade não reagir com firmeza, poderemos assistir à consolidação de um complexo policial‑religioso‑autoritário que, sustentado por legitimidade eleitoral e amparo espiritual, minará as instituições por dentro. O Brasil já provou em 2023 quão frágil pode ser a linha que separa ordem democrática de aventura golpista. Evitar que essa experiência se converta em norma histórica depende, em última instância, de nossa capacidade de resgatar a laicidade, democratizar a segurança pública e reafirmar que, em uma república, não há espada que pese mais do que a soberania civil.