Múltiplas Vozes 25/07/2025

Competências em disputa na PEC da Segurança Pública

A efetividade da PEC, caso triunfe sobre as incertezas, dependerá de regulamentação infraconstitucional minuciosa, pactuação federativa, diálogo com os policiais e fortalecimento dos mecanismos de governança, financiamento e integração

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André Santos Pereira

Delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Especialista em Inteligência Policial e Segurança Pública (ESDP/FCA). Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP). Diretor de Estudos e Propostas Legislativas da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL-BR)

A PEC da Segurança pode agravar um problema público já existente: o conflito de competências na área da segurança pública. A Proposta de Emenda à Constituição Federal, denominada PEC da Segurança Pública (nº 18/2025), elaborada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, foi apresentada ao Congresso Nacional pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último dia 24 de abril, com tramitação inicial na Câmara dos Deputados.

Em sua versão inicial, a PEC propõe alterar competências sob duas perspectivas: unidades da Federação e órgãos. A primeira diz respeito às competências da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios relativas à segurança pública. A segunda trata das competências[2] dos próprios órgãos de segurança pública.

Em termos gerais, busca-se definir “quem pode e deve fazer o quê”, de acordo com suas atribuições.

De forma clara e objetiva, vejamos quais são as competências federativas a serem alteradas pela proposta: analisemos a PEC sob o enfoque do problema público das competências dos entes federados:[3]

A PEC pretende fortalecer a atuação da União no comando administrativo da segurança pública, ao constitucionalizar o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) — Lei Federal nº 13.675/2018 —, ampliando sua competência exclusiva de coordenação (art. 21 da CF).

Essa mudança suscita dúvidas sobre seus efeitos práticos, uma vez que a integração prevista na lei vigente ainda não foi plenamente implementada, e a constitucionalização não dispensa a necessidade de regulamentação infraconstitucional para disciplinar aspectos operacionais, financeiros e jurídicos. Isso também impõe desafios à cooperação federativa e à execução harmônica das políticas públicas na área.

Ante esse cenário, surgem reflexões pertinentes: a constitucionalização é realmente necessária ou bastaria cumprir e aprimorar a legislação já existente? Essa mudança garantirá integração efetiva e respeito às competências definidas? Independentemente da resposta, a execução concreta continuará a depender de medidas práticas e da construção de consensos entre os líderes dos Executivos federal, estaduais e municipais, bem como dos gestores das instituições policiais, para assegurar a cooperação, a interoperabilidade e a harmonia entre os entes federados e entre os órgãos da segurança pública.

Também no âmbito das competências materiais, a proposta não define claramente a repartição de responsabilidades nem garante financiamento equilibrado, limitando-se a estabelecer que será competência comum (art. 23 da CF) — ou seja, um dever compartilhado entre todos os entes federados — prover os meios necessários à segurança pública e à defesa social, o que pode sobrecarregar principalmente os municípios, muitas vezes carentes de estrutura e recursos.

A proposta tem como objetivo conceder ao governo federal o poder de produzir normas de observância obrigatória por estados e municípios. Isso chama a atenção pelo controle da iniciativa e da tramitação da produção legislativa pelo Executivo, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, principalmente no que diz respeito à edição de normas gerais sobre segurança pública, defesa social e sistema penitenciário.

Nesse caso, estamos tratando de competência constitucional privativa da União para legislar (art. 22 da CF), sendo que essencialmente o presidente da República, os deputados federais e os senadores podem criar leis ou autorizar os estados a legislar sobre questões específicas relacionadas a essas matérias. Exemplos de assuntos polêmicos que podem ser tratados nessa nova lógica são o uso de câmeras corporais por agentes policiais e a administração do sistema prisional em cada estado.

Ainda nessa seara das competências legislativas, com outra inserção pretendida pela PEC, o presidente da República e os parlamentares federais terão um certo monopólio sobre a elaboração das leis de segurança pública e defesa social, ao exercerem a competência legislativa concorrente entre União, estados e Distrito Federal (art. 24 da CF). Nesse cenário, a União é limitada a estabelecer normas gerais e cabe aos estados e ao Distrito Federal, em regra, exercer a competência suplementar. Porém, inexistindo lei federal sobre normas gerais, os estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades, e, no caso de haver conflito entre uma lei estadual e uma lei federal que trate de normas gerais, a legislação federal prevalece, e a eficácia da lei estadual será suspensa na parte que for contrária.

Assim, a efetividade da nova configuração, na esfera das competências materiais e legislativas, dependerá de normas infraconstitucionais — ou até mesmo constitucionais, mediante alteração da proposta pelo Congresso Nacional — que estabeleçam critérios objetivos de financiamento, cooperação e corresponsabilidade, sob pena de gerar assimetrias na implementação e conflitos operacionais entre os entes federados.

A PEC nº 18/2025 apresenta um conjunto significativo de alterações na estrutura normativa da segurança pública, ao buscar enfrentar o complexo sistema de competências. Apesar  de  promover o debate sobre a integração com a constitucionalização do SUSP, a proposta carece de garantias quanto à eficácia prática, diante de desafios operacionais, políticos e orçamentários.

No plano federativo, a ampliação da competência da União sobre as temáticas da segurança pública e sistema penitenciário gera tensões com a autonomia dos Estados.

As propostas revelam preocupações com a gestão de competências e recursos, agravadas pela ausência de alinhamento interinstitucional. Para evitar o enfraquecimento do sistema, a tramitação da proposta precisa ser pautada por diagnósticos técnicos e participação ampla, principalmente dos servidores da área.

A efetividade da PEC, caso triunfe sobre as incertezas, dependerá de regulamentação infraconstitucional minuciosa, pactuação federativa, diálogo com os policiais e do fortalecimento dos mecanismos de governança, financiamento e integração. Cabe ao Congresso aprimorar ou arquivar o texto; seja qual for o caminho trilhado, é recomendável prevenir conflitos e promover comandos legais necessários à integração no trabalho policial.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 18, de 2025. Altera dispositivos da Constituição Federal para dispor sobre a organização da segurança pública. Diário da Câmara dos Deputados: Brasília, DF, 2025.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 1 jul. 2025.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 46. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito constitucional descomplicado. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2022.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
BRASIL. Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018. Dispõe sobre a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública. Diário Oficial da União:
Brasília,      DF,     12      jun.     2018. Disponível    em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13675.htm. Acesso em: 1 jul. 2025.
1 É importante destacar as acepções da expressão “competências”, por se tratar de um termo central e recorrente ao longo deste artigo. Na primeira acepção, enquanto competência constitucional dos entes federativos, verifica-se que a Constituição de 1988 adota o federalismo cooperativo, estruturado em competências legislativas — como as privativas da União (art. 22) e as concorrentes (art. 24) — e em competências materiais (também chamadas de administrativas ou executivas), relacionadas à administração de serviços, à execução de políticas públicas e ao exercício de funções estatais, como as de natureza exclusiva da União (art. 21) e as comuns entre os entes federativos (art. 23). Essa divisão busca garantir equilíbrio entre autonomia e unidade nacional (SILVA, 2019). A distinção entre essas competências é fundamental para a cooperação federativa e a efetividade das políticas públicas (ALEXANDRINO; PAULO, 2022).
[2] Na segunda acepção, competência dos órgãos é a atribuição legal que define as funções e poderes para o exercício de atos administrativos válidos, delimitando responsabilidades e âmbito de atuação dentro da estrutura estatal. É requisito essencial para a validade do ato, já que somente o órgão legalmente investido pode praticá-lo, sob pena de nulidade. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, competência é a “medida da autoridade atribuída ao órgão para o desempenho das funções que lhe são próprias” (MELLO, 2017, p. 290). Maria Sylvia Zanella Di Pietro enfatiza que a competência está ligada à função do órgão e à legalidade da atuação, sendo vinculada e inderrogável (DI PIETRO, 2019, p. 158).
[3] Quanto à temática da competência dos órgãos de segurança pública (art. 144), esta será apresentada em artigo apartado, a fim de abordar nosso objeto de estudo — a versão inicial da PEC — de forma pormenorizada. Da mesma forma, trataremos separadamente dos temas específicos não relacionados diretamente às competências, como os fundos constitucionais e a autonomia das corregedorias.

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