Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Foi em razão de um episódio biográfico de racismo, em 1992, ao ser impedido de entrar em um hotel em São Paulo, que Jorge Aragão escreveu a música “Identidade.” Nos versos, o simbolismo dos espaços silenciosamente interditados na metáfora do elevador: “Elevador é quase um templo/Exemplo para minar teu sono/Sai desse compromisso/Não vai no de serviço/Se o social tem dono, não vai”.
Também derivada de situações de racismo, não por coincidência, manifestas na proibição de acesso, tivemos, em 1950, a propositura da primeira normativa brasileira vedando o racismo. A lei Afonso Arinos foi motivada pelo fato de José Augusto, motorista particular do deputado autor do projeto de lei, ter sido barrado na entrada de uma confeitaria no Rio de Janeiro, estando acompanhado por sua mulher, branca, e por seus filhos. O catalisador da tramitação bem sucedida dessa propositura legislativa, no entanto, foi o caso, em 1951, da bailarina norte-americana Katherine Dunham. Ela foi impedida de se hospedar no Hotel Esplanada, na capital paulista, que não aceitava pessoas negras.
Não é verdade que essa expressão acintosa e explícita do racismo esteja em desuso em terras brasileiras. Seguimos sob a lógica colonial da entrada de serviço, prima irmã do quartinho de empregada. Quando quem se apresenta é uma pessoa negra, o fenótipo ainda chega antes, fechando portas e impondo obstáculos. Nada protege do racismo – nem a alta escolaridade, nem o cargo ocupado ou o trabalho exercido. Mesmo sem prescrever e sendo inafiançável, a carga normativa do crime de racismo não constrange, não impede e não evita a imensa violência dos olhares enviesados e da postura que não titubeia, em dizer sem falar: “aqui, você, não”.
Foi isso que uma vez mais aconteceu, agora, em 2025. Quis a ironia que se tratasse justamente de um evento voltado para a discussão da ética no serviço público. A ministra do TSE Vera Lúcia Santana foi impedida de entrar em um seminário, no qual era palestrante. Falaria em um painel, no dia 16 de maio, sobre mecanismos de prevenção e enfrentamento do assédio e da discriminação. O evidente despreparo, a notória ausência de letramento racial e a naturalização da discriminação racial deram espaço ao racismo. Mesmo apresentando sua carteira funcional, a ministra teve que suportar o constrangimento e a humilhação que chocam as vítimas de racismo, frente ao absurdo de se ter a dignidade colocada em questão.
Esse caso da ministra Vera Lúcia deixa em evidência a persistência da desigualdade e do racismo estrutural. Quando olhamos para a realidade que os dados do último Atlas da Violência (FBSP/IPEA) nos trazem, vemos que a população negra enfrenta maiores vulnerabilidades ao longo da vida. E, a despeito da alta escolaridade e da presença em espaços de poder, embora tenham impacto positivo nas trajetórias individuais, trata-se de elementos insuficientes para afastar a permanência do racismo.
Pensando nos desafios, ainda que tenhamos avançado no debate público sobre o racismo, tornar visível o ciclo da violência racial continua sendo necessário e precisa estar no nosso horizonte de urgência. Do ponto de vista da efetividade das leis e dos marcos legais, a aposta isolada na mudança normativa não basta.
É forçoso reconhecer que o debate que se propõe a racializar a discussão da violência em suas diferentes manifestações demanda mudanças de paradigmas que precisam, inclusive, considerar a formação dos operadores do direito, para que estejam mais preparados para uma atuação sensível à justiça racial. Uma atuação antirracista e antidiscriminatória não é condizente com uma leitura de mundo que naturaliza a desigualdade de raça na estruturação da vida em coletividade. Não basta que as leis reconheçam a todos como iguais, se as crenças, os hábitos e mesmo as instituições seguem rotineiramente promovendo a desigualdade. Os elevadores precisam sair do estado permanente de manutenção.