População em situação de rua e os desafios da segurança pública: entre criminalidade e vulnerabilidade
Os moradores de rua, invisíveis socialmente, tornam-se visíveis ao senso comum quando associados à criminalidade. Nesse contexto, o sem-teto é comumente presumido como suspeito, sendo tratado como caso de polícia
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em ciências sociais/UNB. Cientista Político. Policial civil no Distrito Federal. Professor substituto no IPOL/UNB. Associado sênior do FBSP
A questão da população em situação de rua já não passa despercebida em muitas metrópoles brasileiras. Segundo levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade de Minas Gerais (OBPopRua/POLOS-UFMG), em 2024 mais de 327 mil pessoas viviam nas ruas[1]. Da mesma forma, na Capital Federal, o 2º Censo Distrital da População em Situação de Rua apontou 3.521 indivíduos nessa situação[2]. Esse contingente não apenas enfrenta privações, mas também se vê frequentemente enredado em ciclos de criminalidade, seja como perpetrador ou como vítima de delitos. Por isso, a relação entre a condição de morador de rua e a criminalidade tem ganhado destaque na agenda da segurança pública, mas, infelizmente, devido a estigmatizações da população que vive nessa situação.
Levantamento da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) que abrangeu o ano de 2024 e o primeiro trimestre de 2025 apurou 2.995 ocorrências envolvendo pessoas em situação de rua. Tomando-se esse universo, em 70% dos episódios tais pessoas foram registradas como autoras de delitos; nos 30% restantes, apareceram como vítimas. Na PCDF, a condição de morador de rua é, em geral, apurada ou declarada no ato do registro policial. Destaca-se que, quando moradores de rua figuram como autores, os crimes mais comuns são furto, roubo e tráfico de drogas. Por outro lado, como vítimas, ressaltam-se registros de lesão corporal, homicídio, violência sexual e desaparecimento. É notório que, na condição de vítima, pessoas em situação de rua estão mais sujeitas a crimes violentos contra a pessoa do que quando são apontadas como autores.
O perfil predominante da população em situação de rua no Distrito Federal é composto por homens (82,2%), pessoas negras (80%) e na faixa etária de 31 a 49 anos (51,3%). Essas informações do 2º Censo Distrital da População em Situação de Rua, em boa parte, coincidem com as características dos indivíduos em situação de rua envolvidos em ocorrências criminais da pesquisa da PCDF, também majoritariamente do sexo masculino e jovens, independentemente da posição de autor ou vítima. Isso reforça a complexidade do tema população de rua, porquanto indica que a vulnerabilidade social está perversamente ligada à criminalidade.
A invisibilidade social dos moradores de rua, que per si é um problema público, transforma-se em visibilidade para o senso comum quando ocorre a associação à criminalidade. Nesse contexto, o morador de rua é comumente presumido como um suspeito, sendo tratado como caso de polícia. Essa percepção é agravada pelo imaginário social da cracolândia, o qual relaciona a população de rua a usuários e traficantes de drogas ilícitas dispostos a cometer crimes para sustentar o vício. Com efeito, a questão da população em situação de rua transita de uma pauta socioeconômica para de segurança pública, em grande parte fomentada pela cultura do medo e da insegurança. Diante disso, ferramentas repressivas e soluções punitivas são frequentemente propostas como necessárias para lidar com a situação.
A estigmatização da pessoa em situação de rua como um potencial delinquente carrega um forte componente moral, o que tem encontrado eco nas propaladas políticas conservadoras de segurança pública. Ressalta-se que medidas de tolerância zero e de guerra à criminalidade prevalecem sobre a abordagem da vulnerabilidade social subjacente à condição de rua. O resultado disso é uma maior marginalização de uma população já imersa em processos de discriminação e preconceito, tudo em nome da lei e da ordem.
Não obstante, os números sobre a população em situação de rua envolvida em ocorrências criminais, como demonstrado na amostra da PCDF, revelam uma sobreposição entre as condições de autor e vítima. Isso evidencia que essas pessoas não apenas cometem delitos, mas também são impactadas por perversos ciclos de violência e marginalização. Por isso, também é uma pauta da segurança pública e de responsabilidade das polícias, porém não deveria ser avaliada exclusivamente pela via da criminalização dos moradores de rua.
Enfim, o caminho não é negligenciar o problema da população de rua envolvida em crimes, especialmente no mercado de drogas, porém o desafio é imaginar que os arranjos da segurança pública poderiam funcionar para além do punitivismo penal. É fato que as polícias possuem a missão de enfrentar a criminalidade, contudo elas também poderiam se tornar canais de promoção e garantia dos direitos da população em situação de rua, que necessita de dignidade e de políticas públicas integradas que transcendam a mera repressão.