Múltiplas Vozes 21/05/2025

A defesa social revisitada: entre a garantia da segurança e o respeito aos direitos

Por que retomar o conceito do século XIX pode ser fundamental para pensar políticas de segurança no século XXI. Diante das críticas à PEC da Segurança Pública, é preciso revisitar a trajetória do conceito de defesa social e refletir sobre sua pertinência nos marcos de uma política democrática de segurança

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, Professor Titular da Escola de Direito da PUCRS

Renato Sérgio de Lima

Sociólogo, Diretor Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV-EASP

A tramitação da Proposta de Emenda Constitucional da Segurança Pública reacendeu um debate importante: quais devem ser os fundamentos normativos e políticos da política criminal em uma democracia? Entre os críticos da PEC, alguns têm argumentado que sua inspiração na ideia de um Sistema Único de Segurança Pública voltado à defesa social seria um retorno a uma concepção ultrapassada, utilizada historicamente para legitimar a ampliação do poder punitivo do Estado, com pouca atenção às garantias constitucionais.

De fato, o conceito de defesa social tem origens controversas e foi, em diferentes momentos, mobilizado para justificar medidas autoritárias ou seletivas de controle penal. No entanto, sua trajetória histórica é mais complexa do que sugerem algumas das leituras críticas. Revisitar essa genealogia permite compreender não apenas os riscos de sua instrumentalização, mas também as possibilidades de sua releitura democrática, especialmente em contextos como o brasileiro, no qual a segurança pública é reconhecida constitucionalmente como um direito social fundamental.

Origens: do positivismo penal à Nova Defesa Social

O conceito de defesa social tem raízes na Escola Positiva Italiana do final do século XIX. Autores como Lombroso, Ferri e Garofalo propunham uma ruptura com o modelo retributivo clássico, substituindo-o por uma lógica fundada na periculosidade do delinquente. A pena perdia sua função moralizante e assumia uma função protetiva: o objetivo do sistema penal deveria ser defender o corpo social, neutralizando o perigo representado por indivíduos predispostos ao crime. Tratava-se de uma concepção biologizante e determinista, com pouca ou nenhuma preocupação com os direitos individuais.

No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, o conceito é reformulado no interior de uma perspectiva humanista, na chamada Nova Defesa Social, sobretudo por meio do trabalho do jurista francês Marc Ancel. Ancel procurou compatibilizar a ideia de proteção da sociedade com o respeito aos direitos fundamentais, propondo uma intervenção penal orientada pela ressocialização, prevenção e pela proporcionalidade das respostas penais. A defesa social deixava, assim, de ser uma autorização para a expansão do poder punitivo e passava a ser um fundamento ético do direito penal mínimo, em consonância com os marcos do Estado Democrático de Direito.

Críticas contemporâneas e o risco de regressão

Apesar dessa reinterpretação, o conceito continuou alvo de críticas, especialmente por parte da criminologia crítica e da sociologia da punição. Autores como Michel Foucault e Alessandro Baratta denunciaram a ambiguidade do conceito, que pode facilmente ser apropriado por projetos autoritários e seletivos. Em nome da defesa da sociedade, frequentemente se naturalizam práticas de exclusão, encarceramento em massa e controle policial desproporcional, voltadas sobretudo às camadas mais pobres e racializadas da população.

Esse deslocamento acompanha a ascensão de uma nova cultura punitiva em sociedades marcadas pela desigualdade, pelo medo do crime e pela lógica da gestão de riscos. A promessa de segurança deixa de estar vinculada à reintegração social e passa a se orientar por mecanismos de incapacitação e encarceramento em massa, frequentemente guiados por discursos populistas e autoritários.

Segurança como direito social e a possibilidade de uma atualização crítica

Apesar das críticas, é possível — e necessário — retomar o conceito de defesa social sob um novo prisma: o reconhecimento da segurança pública como um direito social fundamental. Em países como o Brasil, onde esse direito está expressamente previsto na Constituição, a sua efetivação deve se dar por meio de políticas que articulem eficiência na prevenção e repressão ao crime com respeito aos direitos e garantias fundamentais dos acusados e apenados, assim como das vítimas.

Nesse sentido, a noção de defesa social pode ser recuperada para estruturar políticas de segurança pública e responsabilização penal que sejam, ao mesmo tempo, eficazes e democráticas. Isso significa superar tanto a lógica puramente repressiva quanto os modelos exclusivamente simbólicos, apostando em ações estatais orientadas por evidências, proporcionais, transparentes e comprometidas com os direitos fundamentais.

A segurança como direito impõe a obrigação de atuar sobre os fatores estruturais da violência, garantindo presença estatal em territórios vulnerabilizados, fortalecendo instituições policiais e judiciais com controle democrático e investindo em políticas sociais integradas. A responsabilização criminal, por sua vez, deve respeitar o devido processo legal, evitar seletividades e promover alternativas penais sempre que possível, sem abrir mão da proteção de vítimas e da prevenção de reincidências.

Nesse contexto, a atualização da ideia de defesa social — agora fundamentada no direito à segurança — deve também incorporar uma dimensão historicamente negligenciada pelo Direito Penal Moderno: a atenção às vítimas dos delitos.

Durante décadas, o sistema penal esteve centrado na figura do Estado e na pessoa do acusado, relegando as vítimas a um papel meramente instrumental ou simbólico. Nas últimas décadas, no entanto, assistimos à incorporação progressiva de mecanismos de reparação e reconhecimento das vítimas, por meio de políticas públicas, programas de apoio e medidas restaurativas. Além disso, tem-se conferido maior valor à palavra da vítima no processo penal, desde que integrada a um conjunto probatório coerente, superando visões que ou a ignoravam completamente ou, ao contrário, absolutizavam seu discurso em detrimento das garantias processuais. Essa mudança contribui para um modelo de justiça mais equilibrado, que reconhece os sujeitos afetados pelo crime e fortalece a legitimidade das instituições penais.

Reatualizar o conceito implica, portanto, compreendê-lo como um princípio de proteção coletiva que articula eficiência e legalidade, prevenção e proporcionalidade, repressão e garantia de direitos. Políticas públicas baseadas nesse equilíbrio devem combinar estratégias eficazes de enfrentamento à violência e ao crime com o controle democrático das instituições de segurança, o fortalecimento da atuação preventiva do Estado e a valorização das alternativas penais.

A responsabilização criminal, nesse modelo, deve respeitar os marcos do devido processo legal, evitando seletividades e reforçando a confiança da população na justiça. Já a política de segurança deve ser integrada a uma visão mais ampla de cidadania, com presença estatal qualificada nos territórios, políticas sociais, urbanas e de redução de vulnerabilidades.

Conclusão: para além da dicotomia entre repressão e garantismo

A genealogia do conceito de defesa social revela uma tensão histórica entre proteção e autoritarismo; entre prevenção e punição; entre, enfim, segurança e liberdade. Em vez de tomar essa tensão como insolúvel, é possível — e necessário — propor uma síntese crítica, que reconheça tanto a urgência de políticas eficazes no enfrentamento da violência quanto a necessidade de preservar os fundamentos constitucionais do Estado de Direito.

Nesse sentido, a crítica à PEC da Segurança Pública não deve se basear na rejeição ao conceito de defesa social, mas na exigência de que qualquer reorganização institucional nessa área esteja firmemente ancorada em parâmetros democráticos, de controle social, responsabilização efetiva das instituições e compromisso com os direitos fundamentais.

Retomar criticamente a defesa social, portanto, é apostar em um modelo de segurança pública que seja compatível com o Estado Democrático de Direito — e que reconheça que garantir segurança não é apenas prevenir crimes, mas também universalizar o acesso à justiça, à cidadania e à dignidade.

 

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