Múltiplas Vozes 12/02/2025

A ADPF das Favelas é oportunidade de melhorar a segurança do Rio de Janeiro

A insistência na estratégia do confronto é um grosseiro equívoco que as polícias fluminenses não querem reconhecer, apesar dos fracassos em perdas de territórios e empoderamento das facções

Compartilhe

José Vicente da Silva Filho

Coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo, ex-secretário nacional de segurança pública, membro do conselho da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo, conselheiro do Instituto Braudel

No dia 7 de fevereiro de 2025 o Secretário da Segurança do Estado do Rio de Janeiro, Victor Santos, em entrevista ao site da Revista Veja/Rio, defendeu a continuidade das operações em comunidades, associando o avanço da criminalidade à ADPF das Favelas. Disse, ainda, que “será preciso enfrentar efeitos colaterais como a morte de inocentes”. Então, as mortes da menina Agatha Félix de oito anos, atingida por um tiro de fuzil quando estava numa Kombi, e da dona de casa Gabriele da Cunha, morta em casa por uma bala perdida, seriam efeitos colaterais inevitáveis. As crianças das 295 escolas fechadas por tiroteio envolvendo policiais na cidade do Rio de Janeiro em 2019, impactadas emocionalmente em sua aprendizagem, também seriam meros efeitos colaterais.

O governador Castro já tinha dado o tom de desafio, dizendo que a política de segurança no Rio “exige demonstração de força e autoridade; confronto numa palavra, coragem na outra” e em sua gestão ocorreram as maiores demonstrações de letalidade policial do Estado, em plena vigência da ADPF: foram oito mortes em confronto policial em São Gonçalo em 2021, 27 mortes de suspeitos e de um policial na favela do Jacarezinho em 2021 e mais 23 mortos na Vila Cruzeiro em 2022.

Ao pautar o confronto, desde a afirmação política no Palácio Guanabara até as ações mortais das tropas equipadas para combate, passando pelo secretário que admite a inevitabilidade da morte de inocentes, não se vislumbra qualquer plano de prevenção, de proteção das comunidades, de processos de inteligência e investigação que permitam antecipar atividades criminosas e neutralizar a logística das facções e suas lideranças com menos risco à população e aos policiais. Também não se falou de nenhum plano de segurança pública para o Estado.

As condicionantes estabelecidas pelo ministro Fachin de que as operações policiais deveriam ser precedidas de cuidadoso planejamento, cautela em relação às escolas e hospitais no roteiro policial, ter ambulância nas proximidades das ações, não transportar mortos em viaturas policiais, preservar locais de mortes para perícias, apesar de óbvias para o trabalho profissional sério, foram entendidas como interferências indevidas. Realmente, não faz sentido que uma corte constitucional interfira num detalhe de uma política de segurança de uma unidade federativa, mas, como lembra o ministro Fachin em seu voto, os problemas de abusos a direitos dos moradores são crônicos, porém prevalecem a inércia dos órgãos estatais competentes e a omissão estrutural dos três poderes.

Os dados mostrados na exposição do voto do Ministro Fachin mostram outra realidade: a redução da letalidade policial de 1.814 casos em 2019, quando da decisão pela ADPF, para 871 mortes em 2023. Em 2024, as mortes caíram para 699. Nesse intervalo, as 22 mortes de policiais em serviço caíram para 11, a redução dos roubos de veículos foi de 44% e os roubos de transeuntes recuaram 64,3%. Apesar das reclamações das autoridades, as operações policiais continuaram, mesmo com as restrições impostas, totalizando 4.789 entre junho de 2020 e dezembro de 2024.  Importante observar que, em 2022, ocorreu uma morte decorrente de intervenção policial a cada 29 prisões efetuadas por flagrante e em decorrência de mandado; em 2024, uma morte para cada conjunto de 87,5 prisões efetuadas, evidenciando mais profissionalismo e cautela nas ações com potencial de confronto.

Embora os habituais indicadores de incidência criminal estejam sendo reduzidos em patamares aceitáveis, paralelamente o Rio de Janeiro tem um dos mais complexos problemas de segurança pública, a profusão de territórios dominados por facções criminosas de traficantes (828 comunidades só do Comando Vermelho, segundo a Polícia Civil) e milícias (278 comunidades em 56,8% do território do Rio de Janeiro), impondo um desafio para o qual as respostas violentas de sempre não produzem os efeitos necessários.

A insistência na estratégia do confronto é um grosseiro equívoco que as polícias fluminenses não querem reconhecer, apesar dos fracassos em perdas de territórios e empoderamento das facções. A Universidade Federal Fluminense identificou um caso típico na favela do Jacarezinho, comunidade de 38 mil habitantes, próxima à sede administrativa da Polícia Civil, onde foram realizadas 289 operações policiais entre 2007 e 2020, com 186 mortes de suspeitos e ao custo de 106 milhões de reais. Fica evidente a inutilidade das operações para produzir efeitos duradouros de pacificação da comunidade e libertação do jugo dos tiranetes locais. A tentativa momentaneamente exitosa de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) foi varrida rapidamente com a falta de apoio e programas de aperfeiçoamento da iniciativa de policiamento permanente.

A renovação da validade das normas da ADPF 635 em julgamento no STF deveria constituir uma oportunidade de reavaliação do planejamento da segurança do Estado do Rio de Janeiro, trabalhando num prazo estratégico de cinco a dez anos focalizando a proteção da sociedade fluminense por uma estrutura policial mais hígida, mais competente, mais inteligente, mais apta a articular as forças públicas e privadas que possam contribuir para o êxito da segurança do Estado. Porque insistir no mesmo de sempre é empobrecer o futuro da sociedade fluminense.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES