No limite das suas certezas: reflexões sobre o adoecimento psíquico de policiais
No atual cenário nacional, torna-se urgente modernizar os instrumentos de trabalho e implementar medidas de cuidado e proteção aos policiais, sobretudo em estados mais afetados pela expansão da criminalidade organizada rumo ao interior do país
Juliana Lemes da Cruz
Doutora em Política Social (UFF), Cabo na PMMG e Presidente do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O debate sobre o adoecimento psíquico da categoria profissional da segurança pública aparece menos como pauta dos discursos das corporações e mais como assunto de interesse público. Ocorrências policiais com desfecho morte, por exemplo, são recorrentemente carimbadas tanto por parte de populares quanto por parte da grande mídia como o resultado do “despreparo” do agente que tinha, na ocasião, o dever de agir. Essa constitui apenas uma das situações do cotidiano desses profissionais que, apesar de corriqueiras, impõem carga mental e dispêndio de energia suficiente para conduzir o mais preparado dos policiais ao esgotamento funcional.
Se, por um lado, a exposição de certos fatos nos meios de comunicação destaca falhas atribuídas a maus profissionais, por outro funciona como uma cortina de fumaça que encobre o colapso da categoria policial diante de questionáveis condições de trabalho.
O desafio dos governos, nesse contexto, vai além das relações sociais. É necessário apresentar respostas concretas para problemas que demandam uma análise aprofundada de cenários socioeconômicos, históricos e políticos. No caso específico da segurança pública, é imprescindível compreender os impactos da tecnologia e a organização crescente dos grupos criminosos.
No atual cenário nacional, torna-se urgente modernizar os instrumetos de trabalho e implementar medidas de cuidado e proteção aos policiais, sobretudo em estados mais afetados pela expansão da criminalidade organizada rumo ao interior do país. As regiões mais remotas do Brasil, historicamente, sofrem com a insuficiência de infraestrutura pública e a ausência de recursos necessários para conter a ocupação criminosa nas lacunas deixadas por políticas estatais falhas.
A natureza das demandas por intervenção policial está mudando, exigindo dos governos a habilidade de promover o diálogo interinstitucional para formular soluções conjuntas em segurança pública. No entanto, os impactos das condições de trabalho dos policiais sobre a qualidade de suas intervenções são insuficientemente avaliados. Geralmente, o adoecimento laboral só ganha visibilidade após tragédias anunciadas, como os casos recentes de policiais que cometeram autoextermínio: Rafaela, policial civil (2023); Aline, policial militar (2024); e Antônio, policial penal (2025).
O suicídio, associado ao adoecimento psíquico sem tratamento adequado, é uma realidade preocupante na segurança pública. A mais recente edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a de 2024, alerta para a urgência de políticas específicas voltadas a esse público. No caso dos policiais, o problema se agiganta ao passo que não se trata, apenas, de risco a um particular. Trata-se da possibilidade real de morrer e de matar.
Assim, enfrentar a escalada de suicídios exige: a) ampla disseminação de informações sobre os sinais do adoecimento; b) estratégias de revisão e adaptação dos currículos das academias de polícia; e c) esforços para humanizar as relações de trabalho, sem romper com os princípios, valores e a missão institucional.
A desconstrução dos estigmas ligados à profissão é essencial para que os policiais desafiem certezas profundamente enraizadas, como: 1. “Policial é herói” – sinônimo de força e coragem; 2. “Superior ao tempo” – suportar qualquer carga física ou emocional; 3. “Adoecer é vergonhoso” – atestado médico é sinal de fraqueza; 4. O “esgotamento mental” como algo natural/comum na profissão – resistência em expor vulnerabilidades; 5. O não compartilhamento da “sensação de abandono” – falta de empatia de chefias e colegas; 6. “Desimportância da vida privada” – relegada a um segundo plano; 7. “Parecer importa mais do que ser” – performar para se alinhar à cultura do grupo ao qual se pretende pertencer.
Essas crenças ou observações são comuns à categoria, moldadas desde os intramuros das instituições, e funcionam como barreiras que sustentam a negação da necessidade de ajuda por parte dos policiais, dificultando o reconhecimento de sua vulnerabilidade.
Por derradeiro, vale lembrar que as categorias do topo da pirâmide têm melhores e maiores condições de fomentar a transformação de processos que considerem o recurso humano tanto quanto as respostas institucionais às demandas sociais. Mesmo porque é imperativo que a Segurança Pública dependa de profissionais em boas condições de saúde física e mental, uma vez que é deles a atribuição de movimentar essa engrenagem, perigosa demais se suas peças fundamentais se encontrarem corroídas. Nesse caso, a perda é ampla: individual, com o adoecimento psíquico do profissional; institucional, com o desgaste da imagem e credibilidade do Estado; e social, com a perpetuação de tensões entre as diferentes camadas da sociedade.