Bruno Langeani
Mestre em políticas públicas pela Universidade de York (UK) e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Autor do livro “Arma de fogo no Brasil, gatilho da Violência”
Há pouco mais de dois anos, o então ministro Flávio Dino, ao lado de representantes do governo do Paraguai, Polícia Federal (PF) e Ministério Público Federal (MPF), anunciava os resultados da Operação Dakovo. Autoridades frequentemente recorrem a superlativos para classificar seus êxitos, mas neste caso não há exagero em chamá-la de maior operação de combate ao tráfico de armas do Brasil, e possivelmente uma das maiores do continente. Foram dezenas de prisões e buscas realizadas no Paraguai, Brasil e Estados Unidos, além do bloqueio de R$ 66 milhões. Entre os presos, destacam-se militares paraguaios de alta patente no Exército e até um ex-comandante da Força Aérea, envolvidos no esquema criminoso em troca de subornos.
A operação revelou o papel central da empresa paraguaia IAS (International Auto Supply), fundada por argentinos, que começou negociando automóveis e passou a importar armas em 2012. Entre 2019 e 2023, estima-se que tenha importado 46 mil armas, das quais 17 mil chegaram ao Brasil, incluindo 2.656 fuzis. Para contextualizar, o recorde anual de apreensão de fuzis no Rio de Janeiro é de 732 armas; a IAS poderia sozinha suprir três anos e meio de apreensões recordes de fuzis no RJ ou até 20 anos em São Paulo! A abrangência do esquema impactava todo o território: a PF documentou 67 apreensões que totalizaram quase 700 armas, espalhadas por 48 cidades de 12 estados em quatro regiões do Brasil. Ficou comprovado que a IAS abastecia as duas maiores facções criminosas brasileiras, Comando Vermelho e PCC.
Curiosamente, uma operação tão grandiosa começou de forma modesta. Em novembro de 2020, uma fiscalização de rotina da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em um ônibus na Bahia apreendeu 23 pistolas croatas e dois fuzis. Apesar de ser considerada uma apreensão significativa para padrões brasileiros, casos como esse frequentemente encerram-se apenas na condenação por porte ilegal do transportador ilegal (com baixa importância na hierarquia). No entanto, o Serviço de Repressão ao Tráfico de Armas da PF decidiu investigar mais a fundo. Intrigada pelas pistolas croatas, até então incomums no mercado ilegal, solicitou a recuperação dos números de série, que haviam sido apagados. A análise revelou a origem das armas e, com apoio decisivo do Centro Nacional de Rastreamento, chegou-se à empresa paraguaia.
Por si só essa investigação inicial já seria notável, considerando que muitos fabricantes, ao serem notificados sobre o uso criminoso de suas armas, suspendem voluntariamente exportações para determinados clientes, como ocorreu com a empresa croata. A PF foi além. Requisitou dados de importação às autoridades paraguaias e aos fabricantes e passou a mapear apreensões de armas relacionadas à IAS em diferentes estados brasileiros, com a colaboração de polícias civis e regionais da PF. Em muitos casos, as armas sequer haviam passado por tentativas de recuperação de números de série, algo infelizmente comum no Brasil.
O trabalho minucioso de três anos revelou um esquema criminoso sofisticado, dividido em diversos núcleos. O núcleo de importação recrutava fabricantes de pistolas e fuzis, enquanto armeiros paraguaios “sanitizavam” as armas, apagando números de série e outras marcas e, em alguns casos, acoplando seletores de rajada para transformá-las em submetralhadoras, o que aumentava seu valor no mercado ilegal. O núcleo de logística recrutava transportadores que utilizavam carros com compartimentos ocultos, caminhões com cargas mistas e passageiros que levavam as armas em ônibus de turismo. Já o núcleo financeiro operava a lavagem de dinheiro, com valores transferidos do Paraguai para os Estados Unidos por meio de doleiros e empresas de fachada em Miami para pagar fabricantes no Leste Europeu.
A Operação Dakovo é um típico exemplo de manual que mostra como o trabalho integrado entre autoridades pode desmantelar esquemas complexos. Desde a busca veicular no ônibus na Bahia até a cooperação com a Interpol e autoridades paraguaias, cada etapa demandou iniciativa, vocação e profissionalismo. A operação só foi possível porque agentes desafiaram padrões: peritos/as que insistiram na recuperação de números de série, policiais federais que conectaram evidências dispersas com apoio de policiais civis estaduais e colaboradores internacionais que atenderam pedidos de rastreamento. Muitas vezes, profissionais envolvidos em diferentes etapas de uma investigação podem sentir que seu trabalho é pequeno ou desconectado do resultado final. A Operação Dakovo demonstra o contrário: o esforço de cada elo da engrenagem é indispensável para o sucesso de ações dessa magnitude.
Esse trabalho, digno de muitos aplausos, deveria inspirar o Governo Federal em sua estratégia de combate ao tráfico de armas, fortalecendo a colaboração entre órgãos nacionais e internacionais, priorizando a identificação completa, recuperação de números de série e rastreamento sistemático de armas apreendidas. Em âmbito estadual, é crucial que mais estados sigam os exemplos do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Paraíba, criando delegacias especializadas no combate ao tráfico de armas.
A Operação Dakovo provou que é possível enfrentar o tráfico de armas com resultados concretos e duradouros. Seu legado é um chamado à ação: investir em estratégias integradas para proteger a sociedade e impedir que armas continuem abastecendo o crime organizado.