Conhecendo a rede logística-criminal do narcogarimpo e do garimpo ilegal na Amazônia
A atividade de garimpagem ilegal estabelece uma complexa rede de aeroportos e portos ilegais, envolvendo acordos com as elites econômicas e políticas locais, além de esquemas de corrupção com a participação de agentes do estado. Todos esses elementos são de interesse do narcotráfico
Francisco Xavier Medeiros de Castro
Mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). Mestre em Ciências Policiais da Segurança e da Ordem Pública (Sistema Militar - CAES/SP). Especialista em Gestão Estratégica em Segurança Pública (PMBA). Ex-Comandante Geral da Polícia Militar de Roraima
O garimpo ilegal e o narcogarimpo correspondem hoje a grande parte da receita levantada pelas organizações criminosas nos estados amazônicos. Sem a intenção de minimizar as terríveis consequências ambientais provocadas por essas atividades, sobretudo nas terras indígenas Yanomami (TIY), o objetivo deste artigo será evidenciar as características da rede logística-criminal que atende a essas duas atividades criminais, tornando-as tão indissociáveis.
Na conceituação fornecida por Cartografias da Violência na Amazônia (2023, p. 119), o garimpo ilegal é definido como qualquer tipo de mineração que ocorra em territórios de proteção integral ou em territórios permitidos sem a devida autorização ou respeito às exigências legais. Essa forma de exploração não permaneceria viável sem os financiadores responsáveis pela sua manutenção: os fortes empresários e pessoas públicas detentoras de grande poder e influência política. O subsídio dessa atividade criminosa se mantém graças ao alto retorno financeiro que faz compensar todos os riscos relacionados a prisões e outras medidas judiciais, afinal “a garimpagem ilegal, que se tornou algo comum na região […], tem acordos com as elites econômicas e políticas, bem como esquemas de corrupção envolvendo agentes do Estado” (CHAGAS, 2023).
É possível traçar um paralelo entre os tipos de investidores, apresentando pontos de coincidência sobre o interesse comum na exploração ilegal do minério:
Políticos e empresários ligados ao comércio e ao agronegócio veem no garimpo ilegal um investimento de alto risco, mas muito atrativo devido aos lucros muito superiores às oportunidades do mercado legal e a uma rede de relações sociais e políticas que minimiza os riscos da ilegalidade dessa prática. É possível que para os “empresários” e “empreendedores” do narcotráfico a atividade seja ainda mais atrativa (CHAGAS, 2023).
Por sua vez, o narcogarimpo é a tipificação de um conjunto de estratégias operacionais que combinam os agentes do narcotráfico e das frentes de garimpagem, criando novas dinâmicas e estratégias de atuação (CHAGAS, 2024, p. 92). Isso se reforça pela constatação de que o fluxo logístico do garimpo ilegal é inegavelmente útil para o narcotráfico pois, em razão da imensa dificuldade de acesso às frentes de garimpagem, o transporte adequado dos equipamentos e dos próprios garimpeiros exige a utilização de variados meios de transporte de alto custo e complexidade (embarcações, veículos tracionados, aeronaves de asa fixa/rotativa, etc). Contudo, além desse compartilhamento estrutural, há a cooperação criminal realizada por diversos colaboradores (pilotos e seguranças privados, fornecedores de armas e munições, contadores, advogados, etc) que se colocam à disposição dos financiadores do garimpo ilegal e de narcotraficantes.
A atratividade da região amazônica para as atividades de narcotráfico e de garimpo ilegal reside na vantagem de se tirar grande proveito da lavagem do dinheiro proveniente do tráfico de drogas e de outras atividades ilícitas, assim como no uso comum de uma grande e complexa cadeia logística por ambas as atividades:
As regiões de garimpo são privilegiadas para a atuação de organizações criminosas: além da possibilidade de “lavar” o dinheiro do tráfico […] a rede de garimpos da Amazônia internacional passou a ser um atrativo logístico para o narcotráfico. O compartilhamento de pistas de pouso irregulares/ilegais, estruturas de abastecimento e fornecimento de serviços se tornou um elo entre as duas atividades (BUENO, COUTO, LIMA, 2024, p. 7)
Interesses oriundos de atores e grupos distintos convergem para o objetivo comum de se aferir o lucro, seja através do narcogarimpo ou do garimpo ilegal. O resultado será um empenho coletivo que reúne elites políticas e econômicas que não medem esforços para centrar seus investimentos nessas atividades e exercer a influência necessária para que o estado continue incapaz de coibir as ações da rede criminosa.
A atividade de garimpagem ilegal estabelece uma complexa rede de aeroportos e portos ilegais, envolvendo acordos com as elites econômicas e políticas locais, além de esquemas de corrupção com a participação de agentes do estado. Todos esses elementos são de interesse do narcotráfico, assim como o uso do ouro como meio para a lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas, bem como a possibilidade de investir recursos ilícitos do narcotráfico nas atividades de garimpo (BUENO, COUTO, LIMA, 2024, p. 84)
Portanto, e com base nos autores pesquisados e em reportagens (clipping) que veiculam o resultado de operações policiais, os componentes dessa rede logística-criminal que alimenta a simbiose do narcogarimpo e do garimpo ilegal pertencerão sempre a um dos grupos apresentados pelo quadro 1.
Quadro 1 – Grupos que compõem a rede logística-criminal do narcogarimpo e do garimpo ilegal.
Grupos | Composição |
Financiadores | ● Empresários/políticos com grande influência política;
● Narcotraficantes. |
Apoio logístico |
● Proprietários de imóveis rurais disponibilizados para armazenamento de minérios, entorpecentes e suprimentos. Essas propriedades também são usadas para decolagem/pouso de aeronaves e como portos clandestinos para embarcações que fazem o transporte hidroviário para as Terras Indígena Yanomami (TIY);
● Pilotos de aeronaves, responsáveis pelo transporte de entorpecentes, de minérios e de mantimentos das bases logísticas (propriedades rurais) até as áreas de garimpo ilegal localizadas nas TIY. Conforme Chagas (2024, p. 93) é relativamente comum o recrutamento de pessoas envolvidas nas frentes de garimpagem da Amazônia pelo narcotráfico, especialmente pilotos; ● Empresários donos de redes de supermercados, de postos de combustível e de lojas de material de construção e itens para maquinários de garimpo com estabelecimentos comerciais nas regiões de acesso às TIY; ● Fornecedores de armas e munições, geralmente representados por policiais ou CACs em desvio de conduta ou; ● Seguranças privados, geralmente constituídos por ex-militares ou por policiais aliciados pelos financiadores do garimpo ilegal e/ou por narcotraficantes. |
Jurídico-Contábil |
● Advogados, responsáveis pela defesa dos interesses dos financiadores do garimpo ilegal e/ou dos narcotraficantes;
● Contadores, responsáveis pela abertura de empresas usadas na lavagem do dinheiro do narcotráfico e do narcogarimpo. |
Operadores do garimpo | ● Proprietários dos maquinários e operadores das diversas funções do garimpo (gerentes, jateiros, raizeiros, maraqueiros, etc) que prestam contas aos financiadores do garimpo ilegal e/ou aos narcotraficantes; |
Fachada |
● Empresários de “fachada” (conhecidos popularmente como “testas de ferro”), responsáveis pela administração dos empreendimentos comerciais oriundos da lavagem do dinheiro obtido pela mineração ilegal, como revendedoras de veículos, farmácias, supermercados. |
Fonte: Autor (2024)
De forma pontual, organizações policiais da esfera federal têm realizado operações eficientes contra a rede criminal ligada ao narcogarimpo e ao garimpo ilegal, a exemplo:
1) das operações para o cumprimento de prisões e de buscas e apreensões que tiveram como alvos empresários do ramo da construção civil em Roraima (BRASIL, 2023);
2) da prisão de fazendeiros que disponibilizavam suas propriedades rurais, nos municípios de Cantá e Mucajaí (RR) para uso das aeronaves utilizada pelos narcotraficantes (G1 RORAIMA, 2023);
3) da operação da Polícia Federal e do GAECO para o cumprimento de mandado de busca e apreensão, na residência do Comandante-Geral da Polícia Militar de Roraima, suspeito de chefiar um esquema de venda ilegal de armas e munições para o garimpo ilegal (ISTO É DINHEIRO, 2024);
4) da investigação que culminou com a prisão de dois oficiais da Polícia Militar do Pará e do afastamento de mais 36 policiais militares envolvidos com o transporte de minérios provenientes do garimpo ilegal (BRITO, 2024).
O direcionamento das ações estatais para a disrupção dessa rede criminosa, contudo, só se mostrará devidamente eficaz quando as instituições responsáveis detiverem condições necessárias e adequadas para protagonizar o correto enfrentamento aos operadores, colaboradores e financiadores do narcogarimpo e do garimpo ilegal em Terras Indígenas Yanomami (TIY) e outras áreas de proteção.
A capacidade inovativa e de governança das instituições também será uma condição primordial nesse contexto, para que o conjunto de órgãos e atores estatais envolvidos tenham a capacidade de se adaptar em tempo hábil às constantes mudanças da dinâmica que caracteriza a rede logística criminal do garimpo ilegal e do narcogarimpo.