A internacionalização do Comando Vermelho: expansão, disputas por rotas e efeitos na segurança, no ambiente e nos territórios urbanos
A ofensiva do CV aproveita a morte ou prisão de líderes das milícias e se conecta à estratégia de intensificar o tráfico de cocaína rumo à Europa, onde a demanda é alta e o preço do entorpecente pode chegar a dezenas de milhares de euros por quilo
Roberto Uchôa
Policial federal, Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
O Comando Vermelho (CV) é uma das mais antigas e influentes organizações criminosas do Brasil, surgida nos anos 1970 no sistema prisional do Rio de Janeiro. Desde então, tem controlado territórios, promovido o narcotráfico e estabelecido alianças estratégicas, destacando-se nas dinâmicas criminais nacionais e no crime organizado internacional. Nos últimos anos, o CV passou a expandir suas operações para fora do país, em especial na direção da Europa, enquanto intensificava confrontos em vários estados. Nessas disputas, rivaliza principalmente com o PCC e as milícias cariocas, afetando a segurança pública e a configuração urbana de diversas regiões.
O grupo nasceu do contato entre presos políticos e criminosos comuns durante a ditadura militar, em penitenciárias do Rio. Esse convívio levou à formação de uma facção centrada no tráfico de drogas, que encontrou espaço em áreas periféricas e favelas pouco assistidas pelo Estado, onde exerceu uma espécie de “justiça paralela”. Sua consolidação se deu pelo controle violento de territórios, enfrentando rivais e forças policiais. Por décadas, as autoridades responderam com operações amplas, pouco baseadas em inteligência e marcadas pela corrupção e brutalidade de agentes. Isso perpetuou confrontos armados e elevadas taxas de letalidade policial, favorecendo ainda mais as facções. Medidas recentes do Supremo Tribunal Federal e a mobilização da sociedade civil trouxeram alguma transparência e redução de mortes, mas os índices ainda permanecem muito elevados para uma democracia.
Enquanto se firmava no Rio, o CV avançou por outras regiões, competindo com gangues locais ou com o PCC. Em áreas como Norte e Nordeste, aproveitou rotas fluviais e novas bases de distribuição, como apontam as edições do estudo Cartografias da Violência na Amazônia, de autoria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Mãe Crioula.
Segundo autoridades de Minas Gerais e Bahia, nos últimos anos, o CV e o Terceiro Comando Puro (TCP) ganharam territórios às custas de facções associadas ao PCC, cujo foco se voltou mais para o mercado internacional, no qual os lucros superam em muito os proporcionados pelo varejo interno. Estimativas apontam que o PCC fatura bilhões de dólares ao ano vendendo cocaína boliviana na Europa, o que explica a atenção reduzida ao domínio local de biqueiras. No Rio, o controle territorial também envolve milícias, o TCP e a ADA (Amigo dos Amigos). Pesquisas do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e do Instituto Fogo Cruzado indicam um crescimento significativo de todas essas organizações entre 2008 e 2023, com destaque para a expansão silenciosa das milícias, sustentada pela cobrança de taxas e exploração de serviços clandestinos. Contudo, o CV figura como o grupo que mais perde e mais ganha áreas em confrontos, sobretudo quando enfrenta milicianos na Baixada Fluminense e no Leste Metropolitano. Essa ofensiva aproveita a morte ou prisão de líderes das milícias e se conecta à estratégia de intensificar o tráfico de cocaína rumo à Europa, onde a demanda é alta e o preço do entorpecente pode chegar a dezenas de milhares de euros por quilo.
O Brasil, com vasta extensão territorial, portos importantes como Santos e Paranaguá, além de falhas institucionais, converteu-se em rota central para o tráfico global. Guerrilhas colombianas e produtores na Bolívia, Peru e Paraguai fornecem drogas ao CV, que embarca as cargas para África, Europa e Ásia. Esse fortalecimento das facções na Amazônia também agrava a destruição ambiental, pois o tráfico se soma à extração ilegal de madeira, ao garimpo e à grilagem de terras, ampliando o desmatamento e prejudicando a segurança climática global. Além disso, a violência decorrente do narcotráfico, da expansão territorial e do domínio de serviços pelas facções e milícias gera graves impactos na vida de moradores de áreas urbanas e periféricas.
As tentativas de combate ao crime têm se apoiado, por décadas, em ações essencialmente repressivas, como grandes operações policiais que, embora gerem prisões em massa, muitas vezes alvejam a base mais pobre das organizações, reforçando o poder dos líderes detidos que controlam o sistema prisional. Também não se atinge o núcleo logístico e financeiro do crime, que segue se recompondo. Novas regras impostas pelo STF, juntamente com o clamor de setores sociais, trouxeram certa redução de letalidade no Rio, mas houve aumento dos índices em outros estados. Especialistas sugerem intervenções mais inteligentes e coordenadas, investindo em análise de dados, regulação de serviços urbanos — como mercado imobiliário, transporte e redes de distribuição de água, luz e internet — e combate efetivo à corrupção interna das forças de segurança. Esse tipo de ação pode inibir o modelo de negócios das milícias e dos grupos que imitam sua lógica de extorsão.
A evolução do Comando Vermelho, à semelhança de outras facções como o PCC, relaciona-se a lacunas estatais e à rentabilidade do narcotráfico. A expansão dessas organizações, seja no Rio, em outros estados ou no plano internacional, expõe a ausência de políticas de prevenção, de serviços públicos robustos e de integração entre agências de segurança. Paralelamente, o crescimento das milícias, a adesão do CV a práticas semelhantes e a adoção do domínio forçado de territórios reafirmam a necessidade de soluções integradas. Além do policiamento qualificado e do desmantelamento seletivo de redes criminosas, é fundamental implementar políticas sociais que reduzam a vulnerabilidade de áreas periféricas. O combate à corrupção policial e política também é decisivo para romper o ciclo de impunidade.
Em termos internacionais, a multiplicidade de atores — guerrilhas, máfias europeias e organizações criminosas de diversos países — demanda cooperação efetiva. Sem parcerias entre governos e sistemas policiais, o tráfico de drogas no Brasil seguirá se expandindo e ampliando seus lucros, causando danos à segurança e ao meio ambiente. A história do Comando Vermelho revela como a ausência de políticas integradas de segurança e desenvolvimento promove um ciclo de violência que, longe de ser solucionado, se realimenta. Para enfrentar isso, regulação urbana, inteligência no combate ao crime e repressão focada em pontos estratégicos devem vir acompanhadas de políticas sociais e fortalecimento institucional. Somente por meio de ações conjuntas entre Estado e sociedade, com envolvimento regional e global, será possível frear de modo consistente a influência dessas organizações e reduzir seus efeitos nocivos sobre a vida da população, a preservação ambiental e o futuro democrático do país.