Consequências das atuais discussões sobre crime organizado no Brasil e o que segurança pública tem a ver com isso
O problema da atuação do crime organizado não é a insegurança que ele traz à população, mas a concorrência que ele oferece na capacidade de governos governarem; dessa forma, a escolha do crime organizado como inimigo público cria uma cortina de fumaça para os problemas brasileiros que levaram a esse estado de coisas
Alan Fernandes
Doutor em Administração Pública e Governo (EAESP/FGV), Professor do Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Pública na Fundação Getulio Vargas. É Coronel da Reserva da Polícia Militar/SP e integra o Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O enfrentamento ao crime organizado é capaz de promover melhores níveis de segurança à população? A resposta da maioria dos políticos e da população irá retumbar um sonoro e inequívoco “sim” e olhares desconfiados e maliciosos ao próprio autor da pergunta. Todavia, primeiro, a se julgar as dinâmicas criminais que produzem esses eventos e, segundo, aos espaços de poder em que o crime organizado se insere nas lógicas dos territórios, requer-se refletir um pouco mais sobre essa questão.
Ao se observar os posicionamentos da classe política, pertencentes a diferentes orientações, vem se construindo uma firme crença de que as organizações criminais são responsáveis pelo roubo de celular, pelo assassinato, pelo furto de veículo, pelo estupro, pelo latrocínio e pela maior parte dos eventos que constituem a percepção de insegurança da população. Assim, o “desmonte” de tais organizações tem a promessa de fazer com que essa criminalidade cotidiana seja controlada. A aposta nessa estratégia está, por exemplo, desde a argumentação da PEC da Segurança Pública junto ao Congresso Nacional, às falas de governantes de posicionamento mais à direita. Mesmo junto à população, essa ideia começa a tomar corpo.
Quais as repercussões políticas dessa construção e por que ela parece equivocada? O primeiro ponto é que, sob a perspectiva da gestão pública, aponta para um oneroso caso de perda do objeto da política pública: quer-se enfrentar determinado problema com a crença de que atuar nessas causas signifique ganhos em relação ao problema a se enfrentar. Muito embora, no caso de mortes violentas intencionais, exista uma sensível correlação entre as guerras de grupos criminais e a ocorrência de assassinatos, o mesmo não se pode afirmar com tanta clareza para outros crimes. Há pesquisas que indicam, inclusive, o oposto. Assim, já sendo bastante importante ponderar-se a relação entre crime organizado e crimes cotidianos para a adoção dessas políticas, o acionamento irrefletido dessa correlação importa um problema ainda mais grave, que é o populismo penal: certos de que essa bala de prata irá reassegurar a segurança prometida, esses medos são mercadorias com os quais se pode lucrar eleitoralmente. Em um cenário em que os problemas da população não tenderiam a serem solucionados, permite que se aprofundem as medidas punitivas, a ponto de legitimarmos importantes atentados ao Estado de Direito.
A forma com que a questão do crime organizado vem sendo encarada no Brasil em sua conexão com segurança pública traz, ao menos, dois problemas. O primeiro deles é circunscrever a atuação das organizações a uma questão criminal. Ele é mais do que isso. É uma questão que diz respeito à capacidade de o Estado fazer valer em seu território as regras estabelecidas coletivamente, que, no limite, significa a própria capacidade de que vivamos sob o Estado Democrático de Direito. Não é, essencialmente, o fato de que o crime organizado gere insegurança, mas o fato de que, com ele, o Estado não consegue governar – ao menos sob o primado da redistributividade e do enfrentamento ao patrimonialismo e ao clientelismo, uma vez que abundam os relatos de conexões espúrias entre Estado e o crime. Cobrar impostos, fiscalizar serviços, assegurar a livre concorrência no mercado, ser atendido pela polícia são breves exemplos de atividades que ficam sujeitas à atuação de mandos criminais. E isso é suficiente para que haja uma grande pactuação do Estado e da sociedade.
O segundo deles é a ideia de que o crime organizado se institucionaliza pelas lógicas dos mercados ilícitos e que, assim, atuações repressivas, incluindo as fiscais, sejam capazes de dar cabo deste problema. Se, por um lado, o poder econômico dos atores criminais determina em boa medida a capacidade de organizar os espaços sociais em que estão inseridos, o poder do crime organizado deriva, principalmente, de sua legitimidade. E legitimidade, assim como confiança, se conquista. O Estado brasileiro goza de baixos níveis de confiança não em razão do crime organizado, mas exatamente seu oposto: o crime organizado se estrutura, do ponto de vista social, pela baixa legitimidade estatal. Isso vale para as relações em segurança pública, mas também no mercado de trabalho (o tráfico de drogas é uma fonte de renda acessível a jovens), no transporte (o serviço clandestino chega em lugares em que o serviço regular não chega), de saúde (o acesso a medicamentos é financiado por criminosos) e nas relações baseadas na violência (as execuções e os tribunais extralegais prestam uma segurança pública e justiça mais efetiva a depender do território). No conjunto de mazelas que reunimos em segurança pública no Brasil, o crime organizado é um deles. Se, do ponto de vista moral, as ligações entre o crime organizado e populações parecem espelhar baixos níveis de engajamento a valores de honestidade e retidão, para os olhos de quem, há gerações, conhece, do Estado, somente o descaso e a ponta da espada, é mais uma estratégia de se manter vivo.
O problema da atuação do crime organizado não é a insegurança que ele traz à população, mas a concorrência que ele oferece na capacidade de governos governarem. Isso é bastante grave, pois diz respeito à capacidade de fazer valer os acordos políticos, representados acima de tudo pela Lei, em seu território. Todavia, mesmo um eventual sucesso em dar fim ao crime organizado não seria capaz de ocupar o espaço de legitimidade junto às populações que, hoje, colocam-se sob a hegemonia desses agentes criminais.
Por final, a escolha do crime organizado como inimigo público traz uma última armadilha: criar uma cortina de fumaça para os problemas brasileiros que levaram a esse estado de coisas. Para ficarmos circunscritos ao campo da segurança pública e da justiça, tornam-se secundários temas como a ausência de legitimidade construída pelas noções autocentradas de ordem e direito, uma prestação de serviço discriminatória de órgãos do sistema de persecução penal em função de classe, raça e cor e uma noção de eficiência que mira mais os interesses institucionais que os da população. Inebriados pelo apelo da figura do “combate ao crime organizado”, passamos a observar mais os efeitos que as causas dos problemas.