Saúde mental dos profissionais de segurança pública: a solução é insuficiente quando tentam “curar” pessoas em um ambiente doentio
A regulamentação vigente favorece o adoecimento. Exemplo disso são as escalas extras obrigatórias, que inviabilizam o descanso físico e mental e a convivência familiar e comunitária
Gilvan Gomes da Silva
1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)
O debate sobre saúde mental no mês de setembro possibilita que questões relacionadas aos adoecimentos dos trabalhadores recebam atenção. Na segurança pública, o dado relevante é sobre o suicídio dos agentes de segurança, especificamente policial. É um dado fatídico que pode expressar a consequência extrema de uma atividade laboral, mas as análises e intervenções estão voltadas mais para a reação dos trabalhadores para evitar o suicídio do que para as suas causas.
Como demonstraram as pesquisadoras Juliana Lemes e Juliana Martins no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, houve queda de 18,1% na taxa de policiais civis e militares vítimas de Crimes Violentos Letais e Intencionais no Brasil, todavia houve crescimento de 26,2% de suicídios no ano de 2023.
Juliana Martins ainda destaca que Madeline Kramer, gerente sênior da International Association of Chiefs of Police (IACP), apresentou propostas para a criação de uma cultura do cuidado e da prevenção no 18º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Percebo que as práticas estão voltadas ao trabalhador: normalizar e aumentar comportamentos de busca de ajuda; fornecer acesso a provedores de saúde mental treinados; criar cultura de liderança que apoie a saúde mental; divulgar mensagens seguras e positivas; ser uma instituição para fornecer apoio durante transições, entre outras que colocam em relevo a pessoa em sofrimento e o suporte necessário.
São propostas importantes para profissionais em sofrimento. O programa Escuta SUSP vai ao encontro como prática do Ministério da Justiça e Segurança Pública para auxiliar profissionais de segurança pública a acessarem atendimentos psicológicos online. Algumas instituições policiais aderiram e outras desenvolveram atividades próprias. O que cabe destacar é que, apesar do problema ser (re) conhecido por pesquisas e debatido nos diversos fóruns científicos e políticos, as soluções contemplam apenas parte da questão, o sofrimento, e as causas são ignoradas.
As causas formam um sistema complexo que necessita de pesquisas e intervenções interdisciplinares para uma melhor apropriação da questão. Todavia, algumas características estão em relevo que transitam pela regulamentação e pelo regime de trabalho militar; as representações do trabalho policial; as condições de trabalho; os conteúdos de trabalho; e as formas e objetivos de trabalho.
Apesar de recentemente terem sido aprovadas a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (Lei 14.735 de 23 de novembro de 2023) e a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares (Lei 14.751 de 12 de dezembro de 2023), há poucos avanços quando comparadas à Portaria Interministerial número 2 de 15 de dezembro de 2010, que atribuía Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública, como, por exemplo, a garantia de EPI; o estímulo à integração familiar; o desenvolvimento de programas de acompanhamento e tratamento destinados aos profissionais envolvidos em ações letais ou alto nível de estresse; a promoção da reabilitação e da reintegração para os profissionais que desenvolveram traumas, deficiências ou doenças ocupacionais em decorrência do trabalho; o direito à jornada de trabalho que garanta a convivência familiar e comunitária; o direito à assistência jurídica, a programas de incentivo à cultura e ao lazer; entre outros que não estão contempladas nas Leis Orgânicas Nacionais vigentes.
A regulamentação vigente possibilita as condições para adoecimento como, por exemplo, escalas extras obrigatórias (mesmo que remuneradas) que inviabilizam o descanso físico e mental e a convivência familiar e comunitária. Assim como negligencia sobre acompanhamento regular psicológico periódico como é feito com os testes físicos (exames laboratoriais e exames de capacidade física) e a ausência de medicina e profissionais de saúde mental específicos para profissionais de segurança pública.
Já os conteúdos de trabalho, debatidos anteriormente no Fonte Segura, são as construções emocionais e condições de saúde mental que foram tidas como necessárias para o exercício da atividade policial brasileira: a manutenção de elevado nível de estresse, a perda da intensidade dos vínculos familiares e comunitários, a manutenção do medo e da sensação de risco à vida, aliadas ao fator de sensação de falta de reconhecimento do trabalho na instituição e na sociedade. Todavia, essas condições construídas estão para atender demandas das tradições totalizantes institucionais e das condições de trabalho precarizadas.
E, por fim, a construção de políticas de segurança pública de combate ao criminoso, centrada exclusivamente nas instituições policiais e, na maioria das vezes, trabalhando de forma isolada, é condição de adoecimento laboral. As políticas de segurança tradicionais têm objetivo de conter a pessoa criminosa e as metas são a partir de apreensões de armas e produtos entorpecentes, detenções ou abordagens de pessoas. São políticas que envolvem menor investimento em formação policial e nas instituições e têm maior capital político revertido em pouco tempo. Todavia, constroem estereótipos de pessoas, de comunidades e de territórios e potencializam o confronto letal, colocando em risco policiais e a própria comunidade. Além disso, constroem o ciclo vicioso de separação entre os policiais e inimigos, de rompimento de laços comunitários e potencializam o sofrimento entre os trabalhadores de segurança pública.
Portanto, as ações até aqui realizadas são importantes, mas para profissionais em processo de adoecimento. Não há garantias institucionais regulamentadas que auxiliem na prevenção, diagnóstico e encaminhamento de profissionais em sofrimento. Da mesma forma, não há ações para modificar as condições de trabalho que diminuam as violações dos direitos e dignidade dos trabalhadores no processo de exposição às situações de violências. Assim como também não há diretrizes para construção de políticas de segurança pública fundamentada cientificamente na causa da criminalidade com metas objetivas, pois assim há maior possiblidade de envolvimento de outros atores sociais e de integração entre agências, agindo com maior rol de ações, sendo que entre estas haveria o combate ao crime, mas não apenas.
Assim, as ações de enfrentamento ao adoecimento dos profissionais de segurança pública centradas exclusivamente no atendimento do indivíduo dão uma falsa sensação de acolhimento e de construção de um ambiente saudável de trabalho. É como “enxugar gelo”, com a manutenção de alto índice de suicídio, porque não é apenas o indivíduo que está doente; o ambiente e a própria forma de trabalho são doentios também.