Atlas da Violência 19/06/2024

Impacto sobre as contas públicas da adoção de critérios objetivos de quantidade para a tipificação do tráfico de drogas

Edição 2024 do Atlas da Violência estima que o custo do encarceramento de pessoas que poderiam ser presumidas como usuárias de drogas ultrapassa a cifra de R$ 2 bilhões a cada ano para o Estado

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Em sua edição 2024, o Atlas da Violência mostra que a proibição de determinadas drogas psicoativas e a subsequente repressão pelo poder público redunda em milhares de mortes por ações violentas no Brasil a cada ano, além de dinamizar o encarceramento em massa que, por sua vez, é o elemento que ajuda a vicejar e fortalecer as facções prisionais. Tomando-se por base a ampla pesquisa realizada pelo Ipea a respeito de réus processados por tráfico de drogas,[1] faremos um exercício para dimensionar o impacto da não adoção de regras definidas sobre quantidade de cannabis e cocaína para pessoas presas pelo porte de tais substâncias sobre os gastos públicos diretamente relacionados ao encarceramento.

O estabelecimento de critérios objetivos – quantidades de referência para os aplicadores da lei penal de drogas – favoreceria maior racionalidade, justiça e equidade na distinção entre usuários e traficantes, servindo de contraponto objetivo às justificativas de “comportamento suspeito” ou de “local de tráfico”, comumente dadas pelas autoridades policiais para justificar as abordagens e flagrantes que instauram a maioria dos processos de tráfico de drogas.

Neste sentido, as projeções do Ipea (2023b) e de Maciel e Soares (2024) consideram dois cenários de referência, sendo que o primeiro combina os critérios objetivos de 25 gramas de cannabis e 10 gramas de cocaína (cenário A), ao passo que o segundo combina os critérios de 100 gramas de cannabis e 15 gramas de cocaína (cenário B), quantidades estas apontadas como compatíveis com padrões de uso, e que, portanto, poderiam ser presumidas para uso próprio, de acordo com especialistas do Instituto Igarapé (2015).

Estimou-se que, a depender do cenário considerado, entre 23% e 35% dos réus processados por tráfico portavam quantidades de drogas compatíveis com padrões de uso, e, em decorrência, poderiam ter presunção de porte para uso próprio (Ipea, 2023a). Considerando-se o universo de réus presos por crimes de drogas (incluindo presos provisórios, regime fechado, regime semiaberto e regime aberto), estima-se que entre 18,9% e 30,0% das pessoas presas por crimes de drogas portavam quantidades compatíveis com padrões de uso. Esses valores correspondem a algo entre 5,2% e 8,2% da população prisional como um todo, tendo em vista que os crimes de drogas são responsáveis por 27,5% das incidências penais do sistema carcerário (Maciel; Soares, 2024).

O Mapa 12.1 mostra, para cada UF, o percentual de presos que respondem por tráfico, mas que não estariam no sistema prisional se considerássemos os critérios citados de quantidade de drogas para uso pessoal: de até 25 gramas de cannabis ou até 10 gramas de cocaína (cenário A); e de até 100 gramas de cannabis ou até 15 gramas de cocaína (cenário B).

Além dos custos sociais engendrados pela lei penal em termos de perdas laborais e custos para as famílias dos usuários presos por tráfico, a prisão desses indivíduos acarreta um alto desperdício de recursos públicos para fazer face ao aprisionamento.

Com base nas projeções do Mapa 12.1 e no custo mensal por preso para cada UF em 2022, divulgado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, estimamos que o custo do encarceramento de pessoas que poderiam ser presumidas como usuárias de drogas ultrapassa a marca de R$ 2 bilhões a cada ano para o Estado, considerando-se a combinação de critérios objetivos do cenário B (100g de cannabis e 15g de cocaína). Trata-se de recursos desperdiçados, que poderiam ter uma destinação muito mais nobre e eficaz para melhorar as condições de segurança, como o investimento na primeira infância e ensino fundamental para populações vulneráveis socialmente, o que poderia acarretar, inclusive, uma diminuição nas mortes por overdose de drogas.

Cabe ponderar, por fim, que tais estimativas refletem apenas os custos diretos relacionados ao aprisionamento, o que corresponde a uma pequena parcela dos impactos sociais da não adoção dos critérios objetivos, nos quais devem ser incluídos ainda os orçamentos de policiamento, de investigação e de processamento judicial, além de custos extramuros do encarceramento para os familiares de pessoas presas e para a sociedade como um todo – de modo que ainda desconhecemos a real dimensão dos custos sociais decorrentes da ausência de parâmetros objetivos para diferenciação entre usuários e traficantes de drogas.

A política de proibicionismo e de guerra às drogas, além de ser totalmente ineficaz para fazer diminuir a prevalência dessas substâncias, gera custos sociais e econômicos vultosos. E não apenas em termos de gastos estatais inúteis e de vidas perdidas, mas também por ser um elemento dinamizador da violência e do esgarçamento das condições de segurança pública, via encarceramento em massa que propicia o nascimento e fortalecimento de facções criminais, e o financiamento para garantir a sustentabilidade do negócio, com a compra de armas e a corrupção de policiais e servidores públicos. Se muitas autoridades no campo da segurança pública estiverem corretas, para cada pessoa morta por overdose de drogas ilícitas 22 pessoas são assassinadas, em vista do proibicionismo.

Já passou do momento de o Brasil repensar a política do proibicionismo de drogas, como inúmeros países vêm fazendo, tanto por meio da descriminalização da posse de pequenas quantidades e do uso de drogas, modelo que já é realidade em 30 países,[2] como pelos exemplos de regulação dos mercados de cannabis no Uruguai, no Canadá e em diversas jurisdições dos Estados Unidos da América – país que atualmente discute a reclassificação, em nível federal, da cannabis, de substância proibida para controlada, ao lado de substâncias como codeína, testosterona e esteroides anabolizantes.

Um trabalho da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados (Teixeira, 2016) calculou que a legalização das drogas geraria, para além da economia de gastos públicos, arrecadação tributária aos governos de R$ 12,8 bilhões anualmente. Se o montante de recursos gastos e de novas receitas tributárias fossem utilizados de modo inteligente na prevenção, como em políticas para a primeira infância e para a juventude, envolvendo educação, cultura e esportes, entre outros, certamente o país poderia reduzir substancialmente o número de homicídios, bem como o número de mortes por envenenamento por drogas. Obviamente, não se defende aqui a legalização irrestrita. As alternativas e o caminho estratégico deveriam ser muito bem pensados e baseados em evidências científicas, para a construção de um marco regulatório que considere experiências bem-sucedidas e lições aprendidas em outros países, bem como a própria experiência brasileira de regulação dos mercados de drogas lícitas, tal qual cigarros de tabaco e bebidas alcóolicas.

Contudo, dadas as limitações impostas pelo imperativo legal de proibição e criminalização, resta encontrar formas de minimizar os efeitos deletérios do atual modelo. Nesse sentido, um bom começo seria modular a aplicação da Lei de Drogas, impondo condições objetivas em termos da quantidade de drogas apreendidas para tipificar o crime de tráfico, juntamente a um maior rigor do judiciário na convalidação de entradas em domicílio sem prévio mandado judicial, assim como de circunstâncias que caracterizariam comportamento suspeito para abordagem policial em locais públicos, temas que têm sido objeto de julgamentos pelos nossos tribunais superiores.[3] Além disso, seria desejável uma mudança de foco de policiamento ostensivo para trabalho de investigação policial, mirando no caminho do dinheiro e nos vértices e elos importantes das facções criminais, ao invés de investir na prisão de pequenos traficantes e usuários.

[1] Há cinco estudos publicados decorrentes da pesquisa “Perfil do processado e produção de provas em ações criminais por tráfico de drogas”, realizada pelo Ipea em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública: Ipea (2023a); Ipea (2023b); Garcia et al. (2023); Soares e Maciel (2023); Maciel e Soares (2024).
[2] Ver: Talking Drugs (2024) Drug decriminalisation across de world. https://www.talkingdrugs.org/drug-decriminalisation/
[3] Quanto aos critérios objetivos de quantidades para diferenciação entre usuários e traficantes, ver Supremo Tribunal Federal – STF/RE 635659. Em relação à discussão sobre ilegalidade da abordagem policial sem fundada suspeita, ver STF/HC 208240 e Superior Tribunal de Justiça – STJ/RHC 158.580. Por fim, sobre a restrição do arbítrio policial para busca domiciliar, ver STJ/HC 598.051; STJ/AgRg no REsp 1.865.363 e STJ/EDAgRgED HC 561.988.

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