Múltiplas Vozes 22/05/2024

A água não levará embora nossos fracassos na segurança pública

Se o tempo dos desastres climáticos veio para ficar, é certo que as forças de segurança pública precisarão se adequar às mudanças. Operações de resgate precisarão de treinamento, e um plano de ação com protocolos pré-estabelecidos em casos de inundações precisará ser pensado

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Betina Barros

Doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo

As inundações que devastaram o estado do Rio Grande do Sul nas últimas semanas são mais uma prova de que já entramos em uma nova era enquanto sociedade. Os impactos das mudanças climáticas que decorrem do aquecimento global não são mais expectativas, conjecturas, coisa de filme de ficção científica ou papo de ambientalista pessimista, mas realidades bastante concretas. Mesmo para aqueles que insistem em negar, está cada vez mais destoante a narrativa de que “não há nada de novo”. As vítimas fatais, os danos materiais incalculáveis e o cenário de guerra assustam até um país já bastante acostumado com a tragédia.

Existe uma fala recorrente entre aqueles que trabalham nas forças de segurança, sobretudo nas polícias militares, de que as atribuições que não têm competência muito bem definida acabam caindo no colo dos policiais. O que não tem dono vira “coisa de polícia”. Uma vez lá, essas atribuições entram na lógica do “missão dada, missão cumprida” que, sabemos, ainda é uma máxima com efeitos práticos – bons e ruins. Em meio à tragédia colossal que abateu o Rio Grande do Sul, é evidente que as forças de segurança foram muito demandadas.

De resgates à garantia da ordem pública, passando pela atuação em abrigos, busca de donativos, condução de barcos, levantamento de barricadas. A polícia foi vista fazendo de um tudo nas reportagens que dominaram a mídia. Os desafios pareciam se multiplicar a cada dia: abrigos lotados, resgates arriscados, confrontos armados, uma segunda onda de inundações que piorou o estado já calamitoso, donativos em massa para serem recebidos e redistribuídos, entre tantos outros. A Força Nacional foi demandada para somar esforços[1], as férias e licenças dos policiais foram todas suspensas, policiais da reserva foram chamados para atuar em auxílio.

Evidente que seria precipitado apresentar qualquer diagnóstico sobre todas as implicações do desastre na segurança pública e no cenário da criminalidade do estado. Muitos efeitos ainda sequer foram identificados. Apesar dos riscos em adiantar o que inspira cautela e tempo – nas ciências sociais quase tudo, aliás –, entendo que teremos mais chances de corrigir a rota se alguns alertas forem disparados o quanto antes. Para usar a infeliz metáfora, mesmo antes da água baixar por completo, alguns estragos em termos de segurança pública nos esperam, e já sabemos disso. Nessa lógica, pontuo a seguir quatro dinâmicas da violência e suas implicações para a segurança pública que me parecem importantes estarmos atentos:

  1. As violências do ambiente doméstico se tornaram violência nos abrigos: desde que as pessoas desabrigadas passaram a ser acolhidas em abrigos – a partir de uma organização conjunta entre Estado e sociedade civil – dinâmicas de violência antes restritas ao ambiente doméstico e de difícil controle por parte do poder público ficaram expostas. Os abusos e violências sexuais que, sabemos há algum tempo, vitimizam sobretudo crianças e adolescentes[2], cujos autores costumam ser homens da convivência familiar, passaram a ocorrer em ambientes de grande circulação de pessoas e causaram consternação em quem ainda não estava habituado às dinâmicas dessa triste realidade. Paradoxalmente, é possível que o acolhimento nos abrigos tenha representado o fim do ciclo da violência em alguns casos, na medida em que identificado por terceiros. A saber, quatro homens foram presos acusados de violência sexual contra crianças nos espaços de acolhimento provisório do RS. Segundo as informações colhidas, todas as vítimas já sofriam abusos em suas casas[3].
  1. As violências nos abrigos ganharam as redes: como a repercussão do desastre tem tomado com furor as redes sociais e as mídias tradicionais, a suspeita da ocorrência de violência contra crianças nos abrigos se espalhou rapidamente. Sem termos dimensão do tamanho do problema – quantas denúncias foram feitas? É um problema generalizado ou são casos pontuais? – e na lógica reativa das redes, logo muitas propostas ganharam corpo, como a disponibilização de abrigos exclusivamente femininos, para que assim mulheres e crianças estivessem, enfim, protegidas. Com a proliferação de espaços destinados ao acolhimento feminino, opcionais, a princípio, não demorou para começar a se espalhar relatos de mulheres que estavam sendo convencidas a se “mudarem” para os locais “exclusivos”, mesmo que não houvesse qualquer indício de violência cometida pelos seus companheiros. Elas, evidentemente, desejavam continuar com a sua família reunida em um cenário já trágico por si só. Em nome da proteção das mulheres da “proliferação de abusadores” que as redes estavam “denunciando”, soluções que poderiam ser efetivas se executadas com cautela, podem implicar em revitimização, estigmatização de certos públicos (sabemos bem que público é esse) e novas violências a uma população já em sofrimento.
  1. As violências das ruas não desapareceram: com a rápida inundação de municípios como Eldorado do Sul, Canoas e São Leopoldo, moradores que não foram avisados ou que optaram por ficar em suas casas precisaram ser resgatados de barco. Logo nos primeiros dias dessas operações, começaram a surgir notícias de tentativas de roubo aos voluntários, ameaças de supostos traficantes para que não retirassem a população, até casos de tiroteios com a força policial[4]. Os saques aos estabelecimentos[5] e roubos a casas que foram deixadas sem proteção se multiplicaram, estimulando os moradores a permanecer nos locais, ainda que a água já tivesse tomado a rua e que a orientação fosse para que procurassem um local seguro. A violência das ruas, presente no cotidiano das pessoas, sobretudo nos bairros periféricos das grandes cidades, não desapareceu em meio à situação de calamidade, apesar das cobranças ingênuas para que os autores desses delitos mantivessem uma ética diante da tragédia. Além disso, integrantes do mercado ilegal de drogas que precisaram deixar suas casas chegaram aos abrigos, de modo que conflitos entre faccionados, antes restritos aos becos das vilas[6], também ganharam os novos locais de acolhimento. Nos abrigos, psicólogas e gestoras se perguntam como lidar com as “brigas de facção”. Seria possível mediar? São sujeitos que se autointitulam faccionados discutindo por banalidades da convivência ou são conflitos que podem escalar para algo mais grave?
  1. As violências das ruas ganharam as redes: com a pressão para que os voluntários fossem protegidos durante os resgates de barco, policiais e forças armadas começaram a fazer a escolta nos turnos noturnos. Ganham as redes as notícias de que as facções impossibilitavam o resgate, de que havia perigo extremo, de que os roubos estavam descontrolados. As reações, como é de costume, não demoraram. Pelas redes, assisti a vídeos de civis participando das operações portando armas de fogo, vi grupos linchando acusados de roubo, policiais dando tiros para afugentar saqueadores de supermercados. Em uma reação em cadeia, todos começaram a falar da situação de “muito perigo” que viviam as cidades. Mensagens sensacionalistas enviadas em massa com o objetivo de criar um pânico geral, como se toda a ordem pública estivesse ameaçada. As forças policiais, impelidas a reagir, organizaram então operações de retaliação[7], prenderam supostos traficantes em posse de marmitas doadas[8] – e de repente se estava falando em “esquema de desvio de marmitas”. As doações começaram a ser escoltadas. Tudo e todos agora parecem estar em perigo iminente de serem alvos de algum “mal” que nos vigia.

Se o tempo dos desastres climáticos veio para ficar, é certo que as forças de segurança pública precisarão se adequar às mudanças. Operações de resgate precisarão de treinamento, e um plano de ação com protocolos pré-estabelecidos em casos de inundações precisará ser pensado. Parece claro que não poderemos continuar agindo na base da reação ao problema. Mas o que também podemos antecipar é que são os problemas que já existem desde quando a vida humana ainda se organizava pelas quatro estações do clima que continuarão a nos perseguir enquanto sociedade. São novos tempos, mas os problemas são antigos.

As mudanças climáticas não serão a solução mágica para o sensacionalismo que pauta as ações em segurança pública, para a violação de direitos a quem seja acusado do cometimento de crimes, para a epidemia de violência sexual que ameaça a infância desse país, para o tratamento paternalista e infantilizador da população das classes baixas (como se, pela sua condição de “vulnerável” não pudessem decidir os rumos da sua vida), para o mercado de drogas que, por ser ilegal, arregimenta a população masculina das vilas e favelas, os divide em facções e os coloca em guerra direta. Nos abrigos, em contato com a classe média “voluntária e solidária”, esses problemas que agora parecem novos, na verdade são fracassos que nos acompanham enquanto sociedade há muitas décadas. A água não os levará embora e ainda deve trazer muitos outros.

[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/05/21/governo-prorroga-permanencia-da-forca-nacional-no-rs.ghtml
[2] Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, 61% das vítimas de estupro são crianças de até 13 anos. 82% dos delitos foram cometidos por autores conhecidos da vítima. 68% ocorreram no ambiente doméstico. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf
[3] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/08/estupros-abrigos-prisoes-chuvas-rs.htm
[4] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2024/05/15/em-canoas-rs-um-dos-muitos-desafios-das-autoridades-e-combater-a-atuacao-de-bandidos.ghtml
[5] https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2024/05/eldorado-do-sul-sofre-com-saques-e-vandalismo-praticados-por-criminosos-infiltrados-entre-desabrigados-clwe805z200zj0148c6grrhk1.html
[6] No Rio Grande do Sul, vila é o termo utilizado para designar espaços urbanos marcados pela vulnerabilidade socioeconômica, quase como um sinônimo de favela.
[7] https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2024/05/operacao-na-restinga-tem-como-alvo-criminosos-que-atiraram-contra-policiais-e-atuaram-durante-a-enchente-clwc17a2s00rj0148eob557k5.html
[8]https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2024/05/presos-por-trafico-desviavam-marmitas-destinadas-a-atingidos-pela-enchente-em-porto-alegre-diz-policia-clwbpz1e300rc0148l458pzv4.html

 

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