O colete laranja nos momentos de desastre
A tragédia no Rio Grande do Sul evidencia a necessidade urgente de um maior investimento em prevenção. É preciso que o interesse pelo Sistema de Defesa Civil deixe de consistir no uso do colete laranja apenas em momentos de desastre. É preciso usá-lo todos os dias
José Roberto Rodrigues de Oliveira
Coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo. Coordenador de Proteção e Defesa Civil do Estado de São Paulo, de abril de 2014 a dezembro de 2016, e ex-presidente do Conselho Nacional dos Gestores Estaduais de Proteção e Defesa Civil
As manifestações atmosféricas ocorrem desde a origem do nosso planeta. Em decorrência da combinação de fenômenos físicos como a pressão do ar e a variação térmica, formam-se vento, umidade, nuvens e precipitações. Esses fenômenos ganham importância à medida que encontram vidas em seu caminho.
A história registra acontecimentos climáticos que ceifaram milhões de vidas: as chuvas na década de 1930 na China, envolvendo o rio Amarelo, que se estima terem provocado de um a quatro milhões de mortos; relatos bíblicos como o da Arca de Noé, que teria enfrentado 40 dias e 40 noites de chuva e uma grande inundação; em Nova Orleans, em 2005, o Furacão Katrina deixou um rastro de destruição com mais de 1,8 mil mortos e mais de 100 mil desabrigados; nesta semana, o noticiário relata chuvas e destruição no Afeganistão, onde teriam morrido mais de 300 pessoas.
No Brasil não tem sido diferente. Dados extraídos do Atlas Digital de Desastres no Brasil[1] informam-nos que, de 1991 a 2023, os eventos hidrológicos causaram 4.286 mortes, com 8,71 milhões de desalojados e desabrigados e 92,93 milhões de pessoas atingidas, danos na ordem de R$ 120 bilhões, R$ 26,36 bilhões de prejuízo público e R$ 123,83 bilhões de prejuízo privado.
Para lidar com esses acontecimentos foi criada a Defesa Civil, logo após a Segunda Guerra Mundial. A precursora foi a Inglaterra. No Brasil, a criação da primeira estrutura de defesa civil data de 1943; em 1946, foi extinta. A primeira estruturação de um sistema de defesa civil se deu em 1966 e 1967, em decorrência de fortes chuvas que provocaram enchentes no Estado da Guanabara e deslizamentos na Serra das Araras (RJ), com estimativa de 1.700 mortes; em Caraguatatuba (SP), foram registradas oficialmente 436 mortes, mas se calcula que esse número foi muito maior[2].
A recente tragédia do Rio Grande do Sul apresenta números iniciais que já a colocam como uma das maiores já ocorridas no país. O Boletim da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) de 12 de maio deste ano, atualizado até as 15h, sinaliza para registros alarmantes em todos os sentidos. São 446 municípios afetados, segundo a Defesa Civil Estadual. Destes, 397 foram reconhecidos pelo governo federal em Estado de Calamidade Pública, por rito sumário, dos quais 304 registraram os decretos no S2iD (Sistema Integrado de Informação Sobre Desastres). A CNM destaca que a maioria dos municípios que registraram seus decretos de anormalidade no S2iD, do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR), começou a detalhar os danos materiais e humanos. Já sobre prejuízos, apenas 62 municípios começaram a inserir esses valores, que já chegam ao montante de R$ 8,4 bilhões.
De acordo com o mesmo Boletim da CNM, a Defesa Civil Estadual relata 143 mortes; quatro municípios relatam 815 desaparecidos. Além disso, 8,8 mil pessoas estão feridas e enfermas, 620,8 mil desalojadas e 86,4 mil pessoas desabrigadas, além de 2,6 milhões de pessoas afetadas.
Os números finais da tragédia ainda estão longe de serem mensurados, mercê das condições climáticas que permanecem afetando a região e os inúmeros levantamentos a serem feitos.
Comecei este texto com a afirmação de que as condições climáticas estiveram, estão e sempre estarão em curso em nosso planeta, e são potencializadas, a meu juízo, pelo desrespeito sistemático à natureza.
O Sistema de Proteção e Defesa Civil está estruturado de modo a cuidar da prevenção, mitigação, resposta e recuperação. Nesse processo, há inúmeros atores que desempenham papeis nessa direção, ou ao menos deveriam desempenhar.
O sistema está no momento da resposta ao Desastre. Em um caso como este, o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) tem um papel crucial no processo, uma vez que a resposta em desastres depende de um trabalho coordenado que envolve múltiplas agências.
Para o trabalho coordenado ter efetividade, foi desenvolvida uma ferramenta chamada ICS (Incident Command System). Aqui no Brasil, algumas agências a chamam de SCI (Sistema de Comando em Incidentes). A ferramenta teve origem há mais de 30 anos, após um grande incêndio na Califórnia (EUA). Naquela ocasião, diversas agências trabalharam no combate ao fogo. Entretanto, apesar de cada uma das agências ter dado o melhor que podia, os resultados não foram satisfatórios, devido à falta de coordenação e de comunicação.
A Defesa Civil do Paraná adaptou o ICS às condições brasileiras. Denominado SCI, apresenta nove princípios a nortear sua finalidade: terminologia comum, alcance de controle, organização modular, comunicação integrada, plano de ação do incidente, cadeia de comando, comando unificado, instalações padronizadas e gerenciamento integral dos recursos.
Toda essa metodologia tem por objetivo tornar os trabalhos mais eficientes e eficazes. Por óbvio, em momentos como estes, que causam, com razão, comoção social, existe uma centena de agências que se apresentam para ajudar, bem como milhares de pessoas se voluntariam para o trabalho.
Para tanto, torna-se fundamental uma coordenação que concentre, de forma organizada, os recursos humanos e materiais que serão empregados no desastre, sob o risco de, caso assim não proceda, colocar em risco o socorro às vítimas. Na mesma linha, a comunicação deve ser centralizada, e as informações devem chegar a todos através de uma fonte oficial, que trará segurança em um momento no qual as condições psicológicas de todos os afetados estão fragilizadas.
Na era digital, da comunicação instantânea, que muitos utilizam para “lacrar” nas redes, o Estado deve assumir o controle e concentrar todas as informações, divulgando-as de forma a não causar mais insegurança aos afetados.
A tragédia do Rio Grande do Sul deixa evidente que é preciso investir mais em prevenção. A cada dólar investido em prevenção economizam-se sete dólares na recuperação. É preciso que o interesse pelo Sistema de Defesa Civil deixe de consistir no uso do colete laranja apenas em momentos de desastre. É preciso usá-lo todos os dias.