Múltiplas Vozes 20/12/2023

Quando a segurança legisla: como uma instrução normativa abriu caminhos para o aumento da letalidade policial na Bahia

Medida buscou adoçar a regulamentação aplicada aos militares acusados de matar civis, criando um estado de coisas que pode ter impactado no aumento abrupto da letalidade policial da Bahia em 2019 e facilitado a continuidade de seu crescimento nos anos seguintes

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Lara Falcão

Doutoranda e mestra em Sociologia e graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

A Bahia vive uma curva ascendente nos dados de letalidade policial. Em 2019, suas polícias mataram 773 pessoas. Em 2020, esse número subiu para 1.137 – um aumento de 46,5%, quando a média nacional de mortes por intervenção policial, em contraste, subiu no mesmo período 0,3%[1]. Em 2021, as polícias militar e civil da Bahia vitimaram 1.335 pessoas e, em 2022, 1.464 – novamente na contramão da média nacional: enquanto a letalidade policial brasileira diminuiu 1,5% de 2021 para 2022, a baiana aumentou 9,6%[2]. Esses números indicam que a Bahia tem se desenhado como um caso particular, a ser estudado em suas peculiaridades. Uma delas é a de que o salto na letalidade policial do estado ocorreu em 2019, coincidindo com a edição da Instrução Normativa Conjunta (INC) nº 01/2019[3] pelos órgãos de segurança pública baianos.

A INC nº 01/2019 estabelecia como militares estaduais deveriam ser investigados quando, dentre outras hipóteses, fosse atribuída a eles a morte de um civil. Declarada parcialmente inconstitucional pelo TJBA em março de 2023[4], muitos de seus aspectos são dignos de atenção. Neste texto, analiso como a Instrução Normativa Conjunta nº 01/2019 buscou adoçar a regulamentação aplicada aos militares acusados de matar civis, criando um estado de coisas que pode ter impactado no aumento abrupto da letalidade policial da Bahia em 2019 e facilitado a continuidade de seu crescimento nos anos seguintes.

De partida, as organizações de segurança pública baianas consideraram que o policial que matasse “sob confronto” deveria receber um tratamento diferenciado, ofertado a partir de uma noção pouco determinada e maleável de confronto. Para a INC nº 01/2019, confronto é “a situação em que o militar estadual em serviço seja alvo de ato hostil, especialmente mediante disparo de arma de fogo” (art. 16). “Ato hostil” é amplo; a menção ao disparo de arma de fogo, exemplificativa. A regulamentação, em suma, deslocou o conceito de “confronto” para o igualmente aberto “ato hostil”, a fim de que seu conteúdo concreto fosse definido caso a caso, na prática.

Ocorre que nem sempre essa apuração precisaria acontecer. Caso o policial em questão comunicasse espontaneamente o “confronto” ocorrido, sua conduta era considerada justificada (art. 18) – “salvo prova em contrário” e “a critério da autoridade” que presidisse o inquérito. Com isso, criou-se uma presunção relativa de que o policial que matasse em confronto agia “justificadamente”, desde que assumisse o fato.

Mas, caso a apuração viesse a ser aberta, o seu manejo dentro do âmbito da corporação também havia sido instituído. A instrução dispôs que a Polícia Civil (PC) só poderia ter iniciativa para instaurar Inquérito Policial (IP) sobre mortes “em confronto” em face de operação conjunta das polícias civil e militar (art. 17, §3º). Em caso de morte causada em operação exclusiva da PMBA, o IP só poderia ser instaurado pela Polícia Civil mediante requisição do Ministério Público, determinação do Secretário de Segurança Pública ou do Delegado Geral da PC (art. 17 §4º).

A norma, portanto, estabeleceu um passivo para que autoridades civis interferissem numa competência que passou a ser, em regra, da Polícia Militar. Ora, “requerer” ou “determinar” que o inquérito seja civil é uma discricionariedade inserida numa trama complexa entre organizações que disputam uma série de interesses (orçamentários, publicitários, pessoais, programáticos) – uma moeda de troca cujo uso republicano pode exigir coragem. Assim, conclui-se que, em 2019, as organizações de segurança pública da Bahia estipularam que militares que matassem civis fossem investigados, preferencialmente, por militares.

Sigamos. No artigo 21, parágrafo único, logo após qualificar como “recomendável” que “todas as armas utilizadas no confronto sejam imediatamente apreendidas a fim de serem submetidas à perícia”, os escritores da norma mitigaram a recomendação: a autoridade responsável pelo inquérito poderia, “fundamentadamente”, determinar que fossem apreendidas apenas as armas daqueles policiais que confirmassem ter efetuado disparos. O efeito prático dessa permissão é evitar que “situações de confronto” pudessem ser, por meios técnicos, reveladas como situações de arbítrio policial.

Podemos concluir, portanto, que as organizações de segurança pública baianas, por meio da INC nº 01/2019, criaram um estado de coisas no qual: i) imperava uma noção pouco determinada e maleável de “confronto”, a partir da qual policiais acusados de matar civis receberam tratamento diferenciado, ii) a palavra dos policiais envolvidos no “confronto” era suficiente para afastar a abertura de um inquérito policial iii) e para evitar a realização de perícias em armas, tudo dentro de iv) procedimentos em que as mortes produzidas pelos militares foram apuradas, preferencialmente, pelos próprios militares.

Em arremate, o artigo 22 da INC nº 01/2019 estabelece que, quando não instaurado Inquérito Policial para investigar a morte de civil sob “confronto”, essa morte não entraria nas estatísticas de Crimes Violentos Letais Intencionais da Bahia. Ao ocultar os números, buscou-se dificultar o controle social sobre a violência policial. E, mesmo com dados mascarados, a Bahia se tornou em 2022 o estado cujas polícias mais mataram no Brasil.

[1] FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021, p. 57. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf. Acesso em 14 dez. 2023.
[2] FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023, p. 59. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 14 dez. 2023.
[3] A Instrução Normativa Conjunta nº 01/2019 SSP/PM/CBM/PC/DPT DA BAHIA pode ser acessada no Diário Oficial Executivo da Bahia do dia 27 de julho de 2019, pág. 74, a partir de busca no link Diário Oficial Online (egba.ba.gov.br).  Antes disponível no site da Academia de Polícia da SSP/BA, o documento foi recentemente retirado do endereço eletrônico anterior.
[4] Acórdão disponível em: attachmentinline_01223575_00.pdf (atarde.com.br). Acesso em 04 set. 2023.

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