Vale o Escrito: Meandros do Jogo do Bicho no Rio de Janeiro

A série documental “Vale o Escrito”, disponível no Globoplay, é uma exploração aprofundada e fascinante dos conflitos e nuances do Jogo do Bicho no Rio de Janeiro. Lançada no início de novembro, a série de sete episódios traz um olhar único sobre um dos fenômenos ilegais mais intrigantes do país.

O primeiro episódio se inicia com uma reconstrução histórica que contextualiza as origens dessa loteria clandestina, que começou como uma iniciativa legal para arrecadar fundos para o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro no final do século XIX, mas cuja popularidade escapa do controle estatal e se converte em um elemento complexo que organiza territórios urbanos e estabelece controles e hierarquias violentas ao estilo mafioso.

O jogo do bicho, embora ilegal, não é classificado como crime, mas como contravenção penal sujeita a penalidades mais brandas. Essa caracterização gera uma atmosfera ambígua, onde a atividade clandestina encontra uma aceitação social e uma abordagem tolerante por parte das autoridades, que frequentemente agem de maneira condescendente e seletiva. Ao contrário de atividades como o tráfico de drogas e outras formas de crime organizado, percebidas como altamente prejudiciais à sociedade, o jogo do bicho é frequentemente visto como um elemento que promove ordem social. Isso se deve à sua capacidade de organizar territórios, fomentar um jogo baseado na confiança interpessoal e empoderar líderes que cultivam relações de mandonismo e clientelismo com as comunidades locais.

A operação na clandestinidade e a necessidade de proteção contra ameaças internas e externas conduzem à cooptação de agentes do Estado, especialmente policiais, que são recrutados para supervisionar as bancas, garantir segurança pessoal e realizar ações de execuções como parte de acertos de contas. A inclusão de policiais e políticos nas folhas de pagamento também assegura a continuidade das operações. Essa conivência das autoridades permite que atos criminosos ligados ao jogo do bicho, como corrupção, lavagem de dinheiro, coação e homicídios, sejam frequentemente ignorados ou minimizados.

Figuras emblemáticas do folclore carioca, os bicheiros tradicionais muitas vezes optam por uma presença pública marcante ao invés de uma atuação discreta. Buscam ativamente os holofotes e reconhecimento, utilizando paixões nacionais, como o futebol e o samba, como estratégias de autolegitimação. A relação estreita e complexa entre o jogo do bicho e as escolas de samba de destaque no carnaval carioca é um dos aspectos mais notáveis e extravagantes dessa busca por atenção e reconhecimento. Grande parte das escolas de samba e até a própria liga que organiza o carnaval mantêm vínculos diretos com os bicheiros, que financiam os desfiles e se tornam figuras de destaque no carnaval, no qual se congratulam com celebridades, políticos, atletas e jornalistas, assumindo o papel de benfeitores venerados no maior espetáculo da terra.

Certamente a luz e a sombra, as contradições e ambiguidades desse mundo são elementos que permitem que essa história seja contada de maneira anedótica e quase cínica pelos surreais personagens que desfilam pela série e aceitam compartilhar abertamente com as câmeras e com os espectadores suas versões a respeito de trajetórias pessoais e conflitos nos quais se envolveram, testemunharam ou imputam a terceiros. Aliás, essa é a grande riqueza do documentário. Ele se destaca por trazer a maior parte dos próprios protagonistas do Jogo do Bicho para contar suas histórias, uma abordagem rara e valiosa que oferece um olhar detalhado sobre as complexidades.

A gestão da violência nas batalhas internas e externas entre os principais grupos que controlam o jogo do bicho é um elo crucial que conecta os personagens da série. Suas disputas e alianças definem os contornos da cidade do Rio de Janeiro. O documentário revela como, na década de 1980, um acordo entre esses grupos criou uma cúpula que passou a estabelecer relações cordiais, após pactuar a divisão territorial do jogo, a fixação de preços de apostas e prêmios. Contudo, com o tempo, novos desafios emergem, principalmente com o aparecimento de novos protagonistas, lutas pelo poder e envolvimento em outras práticas ilegais e violentas.

O fascínio da série reside principalmente no aprofundamento nas complexas histórias das famílias que controlam esse mercado no Rio de Janeiro, apresentando ao espectador um cenário de intrigas e estratégias comparável a um “Game of Thrones” à brasileira. O jogo do bicho é um empreendimento familiar e patriarcal fundado em relações de confiança, no qual dinastias acumulam grande capital econômico e social por meio do poder e influência. No entanto, esse domínio é periodicamente desestabilizado por lutas por territórios, disputas de poder entre gerações e guerras internas pela sucessão. Por essa razão, a trama vai além dos bicheiros, englobando seus herdeiros, esposas, amantes, irmãos e sobrinhos, desvendando uma teia complexa de conflitos internos, fraudes, traições, prisões, vinganças, ressentimentos e assassinatos, em uma narrativa envolvente e reveladora.

Em suma, “Vale o Escrito” é uma série documental que oferece uma visão abrangente e fascinante do Jogo do Bicho no Rio de Janeiro, desvendando as camadas de uma prática criminosa que está intrinsecamente ligada à identidade cultural, social, política e conflitiva da cidade. Os aspectos violentos do jogo do bicho refletem não apenas as dinâmicas internas de um jogo ilegal, mas também como esse fenômeno se entrelaça com estruturas sociais, políticas e criminosas mais amplas no Brasil. Com sua combinação de entrevistas exclusivas, imagens de arquivo e uma narrativa magnética, a série é um recurso valioso para entender alguns dos aspectos mais intrigantes da história recente do Rio de Janeiro.