Múltiplas Vozes 26/07/2023

PL da Lei Orgânica das PMs caminha na contramão da proteção das brasileiras

Teto de 20% das vagas nas corporações para policiais mulheres ignora o fato de que as demandantes buscam ajuda da policial fardada no momento em que estão diante de episódios agudos de violência. É na figura de outra mulher que as vítimas enxergam proteção e segurança para relatar o que lhes ocorreu

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Juliana Lemes da Cruz

Doutora em Política Social – UFF, cabo na PMMG e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A publicação do Anuário 2023, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre os dados de 2022, em mais um ano, alertou sobre a urgência de políticas voltadas ao enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres, destacando o crescimento de todos os indicadores relacionados à modalidade violenta. Nos crimes de feminicídio, foram as mulheres negras as mais vitimadas (61,1%). A cada dez mulheres assassinadas, sete foram mortas dentro de casa. Em 53,6% dos casos, foram seus parceiros íntimos os autores. Os crimes de feminicídio tentado cresceram 16,9% e os consumados, 6,1%.

Na contramão das propostas para fazer frente ao fenômeno, o Projeto de Lei nº 4363, que tramita há 22 anos –, proposto, em 2001, pelo Poder Executivo – gestão de Fernando Henrique Cardoso –, encontra-se em evidência. Trata-se da Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e Bombeiros Militares […], aprovada na Câmara dos Deputados em dezembro de 2022 (PL 3045/22) e pela Comissão de Segurança Pública do Senado Federal em 2023.

Na sua última versão, propôs a fixação de um teto de 20% para ingresso de mulheres nas corporações policiais militares via concurso. Condição que colabora, sobremaneira, para o aprofundamento do desafio estatal quanto à proteção das meninas e mulheres brasileiras, bem como da dificuldade do alinhamento intersetorial no que tange ao enfrentamento da crescente violência contra esse público.

Conforme disposto no Anuário, no Brasil, a média de mulheres nas instituições policiais militares é de 12%, o que se faz problemático, uma vez que a violência doméstica é caracterizada pelo componente relacional. O que indica natureza diversa dos demais sinistros, sendo necessário tratamento diferenciado ao problema. Isso perpassa, sem dúvida, a presença feminina nos quadros para atendimento das demandantes.

Sem referenciar a necessidade de policiais femininas em outras tantas demandas da segurança pública, a presença de mulheres nas corporações militares constitui fator determinante para a promoção da proteção integral às mulheres, prevista na Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. Isso porque a Polícia Militar constitui uma das instituições portas de entrada das mulheres em situação de violência doméstica. As demandantes buscam ajuda da Polícia fardada no momento em que estão diante de episódios agudos de violência, sendo que, nessas ocasiões tão sensíveis para as meninas e/ou mulheres vítimas, é na figura de outra mulher que elas enxergam proteção e segurança para relatar o que lhes ocorreu naquela situação.

É fato que explicar o quão simbólico é para uma mulher fragilizada encontrar acolhimento em outra mulher em um momento de crise, frustração, constrangimento, sentimento de culpa, vergonha, dor ou angústia, não é tarefa simples. Especialmente sob o cenário brasileiro, onde sobre a mulher recaem cobranças associadas ao seu gênero, os chamados papéis socialmente construídos para homens e para mulheres, contar com o atendimento policial qualificado por parte de outra mulher faz toda a diferença.

Pode residir nessa discrepância entre o número de policiais femininos e masculinos uma das razões pelas quais as mulheres deixam de buscar por seus direitos, não oficializando suas denúncias junto às polícias. Situação que evidencia as subnotificações. Nesse cenário, a fixação do teto de 20% das vagas nas polícias militares para mulheres e, logicamente, o quantitativo majoritário das vagas (80%) para homens evidencia uma medida excludente, ao mesmo tempo reprodutora do silenciamento de violências que precedem feminicídios.

Nessa direção, para dirimir quaisquer dúvidas acerca da interpretação defendida no presente texto, cumpro o dever de evidenciar o trecho da Lei 3045/2022 que, embora tenha passado pelo crivo de pessoas experimentadas no assunto – a análise –, mostrou-se dúbio.

Conforme disposto no Art. 5º, § 6o “Fica assegurado, no mínimo, o preenchimento do percentual de 20% (vinte por cento) das vagas nos concursos públicos por candidatas do sexo feminino, na forma da lei do ente federado, observado que, na área de saúde, as candidatas, além do percentual mínimo, concorrem à totalidade das vagas”.

Sendo assim, incompatível para o fim a que se destina, uma vez que abre margem para interpretações outras, que poderão ser exercidas conforme a conveniência dos “entes federados”. Sob tal cenário, o risco maior recai em forma de prejuízo às mulheres: às demandantes dos serviços e, principalmente, às mulheres que se dispõem a concorrer a uma vaga nos concursos públicos das polícias estaduais, correndo-se o risco de precisarem acionar a Justiça para a garantia de interpretação contrária.

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