Eduardo Batitucci
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Segurança Pública da Fundação João Pinheiro e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No mundo contemporâneo do trabalho, no qual as organizações se encontram sob tensões resultantes de mudanças culturais, organizacionais, e tecnológicas, o significado das profissões e das carreiras profissionais vem mudando e se transformando muito rapidamente.
Também no serviço público, na contemporaneidade, há um conjunto de pressões sociais relacionadas à crise fiscal do estado, à crise das profissões tradicionais, demandas por produtividade, accountability e valor público, que vêm provocando mudanças tangíveis na forma como nós percebemos e trabalhamos com as ideias de profissão, formação e desenvolvimento de carreiras profissionais no serviço público.
Muitas dessas pressões apontam para a reconfiguração de espaços tradicionais de poder corporativo e estamental na lógica do serviço público brasileiro, em busca de mais eficiência, com menor custo e entregas mais substantivas à cidadania. Nas carreiras vinculadas à segurança pública e ao provimento de justiça, não deveria ser diferente.
Tradicionalmente, em muitas sociedades no hemisfério norte, a profissionalização policial caminhou paralelamente à profissionalização da própria administração e do serviço público e à consolidação da Democracia, se desenvolvendo, no caso policial, na busca por legitimidade e reconhecimento profissionais através, do ponto de vista do saber profissional, do diálogo entre o conhecimento empírico, de natureza propriamente operacional, sistematizado e procedimentalizado, para garantir uniformidade – e um conhecimento de natureza acadêmico, constituído para organizar e dar sentido a este conhecimento empírico, e produzido em interlocução substantiva com a universidade e os institutos de pesquisa, lado a lado ao desenvolvimento da cidadania e do espaço público, frequentemente com a incorporação de novas tecnologias e inovações.
Entretanto, a consolidação e constituição histórica do campo da segurança pública e justiça criminal no Brasil tiveram suas origens completamente desvinculadas da discussão da promoção e garantia de direitos sociais e individuais, como aconteceu em muitas sociedades do hemisfério norte. Especialmente no que se refere ao aparato policial, nos constituímos, ainda no período colonial, e evoluímos durante o século XIX, para garantir a capacidade da Coroa portuguesa (e depois do Império) de taxar as riquezas, fazer valer os desígnios do Estado absoluto, e, principalmente, controlar a massa de escravos e subcidadãos livres ou libertos.
Por consequência, o mandato da polícia, desde o princípio, tendeu a ser demasiadamente amplo e mal definido; o exercício cotidiano da autoridade policial frequentemente ultrapassa os limites estatutários que formalmente a definem; as ligações entre policiais e militares das forças armadas permanecem como um forte elemento cultural e institucional a definir parte do campo policial; e as preocupações sociais com a técnica, os valores e os limites da atividade policial, isto é, o seu compromisso com os valores democráticos, encontram baixa ressonância social.
A consequência é que o conhecimento que informa, e as carreiras que organizam o campo policial no Brasil, se desenharam de forma a espelhar o caráter hierárquico da sociedade brasileira, produzindo efeitos visíveis na baixa capacidade de interlocução com a sociedade, no alto nível de complexidade organizacional e conflito sistêmico nas suas dimensões institucionais e operativas, na vinculação histórica à perspectiva de defesa do Estado contra a sociedade, resultando, portanto, em baixa profissionalização e baixos reconhecimento e legitimidade social.
Do ponto de vista da formação e do conjunto de conhecimentos organizacionalmente disponíveis para o desenvolvimento da carreira profissional, a consequência é a frequente incompatibilidade ou incoerência entre os conhecimentos formais e sua utilidade substantiva para o desempenho profissional, usualmente organizado segundo um “currículo oculto”, de natureza empírica, mediante o qual o policial “realmente aprende” o que significa fazer polícia.
A despeito de termos avançado bastante nos últimos 20 anos no desenho e institucionalização de iniciativas substantivas para a delimitação de um conjunto de competências a delimitar e nortear a profissão policial no Brasil, tais como esforços mais estruturais de construção de bases ou matrizes curriculares em âmbito federativo, até a incorporação de tecnologias contemporâneas como as câmeras corporais ou a inteligência artificial, o grande salto cognitivo das polícias brasileiras ainda está para ser realizado.
Na contemporaneidade brasileira vive-se, em muitas organizações policiais, uma situação de “transição forçada”, seja em virtude da crise fiscal do estado (que impõe pesadas restrições ao recrutamento, implicando em soluções de rompimento relativo da lógica estamental tradicional), seja em função do envelhecimento, em virtude da dificuldade de reposição de cargos por aposentadoria (que pode impor adaptações em funções e responsabilidades, por exemplo, através da desconcentração de comando e responsabilidades). Logo, o desenho de carreira hierárquica tradicional precisa urgentemente se adaptar para incorporar transições por competências, indispensáveis para a modernização de processos, desenvolvimento de inteligência corporativa e o enfrentamento às ameaças à segurança e à ordem contemporâneas, mas e especialmente, a garantia de cidadania organizacional para todas e todos, independentemente da sua situação hierárquica.
A especialização e complexificação organizacional precisam caminhar lado a lado ao reconhecimento destas complexidades, que devem ser enfrentadas menos com a imposição ritualística da disciplina e do controle, e mais com a incorporação de um desenho de formação profissional por competências, onde metodologias de solução de problemas, uso de evidências, compartilhamento de informações, e inteligência emocional, dentre tantas outras necessidades contemporâneas, tenham o seu devido lugar.