Múltiplas Vozes 15/06/2023

O futuro da inteligência nacional

É no fornecimento de conhecimento ao Executivo que a ABIN tem falhado. Às vezes por saber de menos, outras por não conseguir entregar os fatos e análises; uma terceira falha é querer saber tudo, abocanhar mais do que consegue engolir

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Normalmente os textos, produzidos pelas agências de inteligência sobre seu papel, primam por justificar suas atividades em longos parágrafos. E mesmo as definições também são extensas, tentando deixar pouco espaço para as críticas. Existem várias definições sobre o serviço que a maioria dos países utilizam para se manter informados. O mais corriqueiro é definir como organismos encarregados de fornecer conhecimento que habilite o executivo a tomar decisões ou elaborar planos.

Quanto à atividade propriamente dita, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) considera que seu trabalho obedece a um conjunto de métodos, processos e valores que servem de fundamento, orientam e disciplinam a obtenção do conhecimento voltado para a área de inteligência.

Tudo muito bonito, certo?

Mas, como sempre, a prática não é bem assim. A Agência, como é conhecida, teria por obrigação obter as informações não abertas, ou seja, aquelas que estão escondidas, camufladas, sob sigilo etc. e, através da junção delas com as de fontes abertas, como por exemplo a imprensa, produzir conhecimento. E qual a diferença entre informação e conhecimento? É que o primeiro não foi ainda analisado, validado. Muitas vezes nem é mesmo informação, apenas boato, fofoca, coisas do tipo.

E é no fornecimento de conhecimento ao Executivo que a ABIN tem falhado. Às vezes por saber de menos, outras por não conseguir levar os fatos e análises ao Executivo, e uma terceira falha é querer saber tudo, abocanhar mais do que consegue engolir.

O primeiro caso não precisa ser explicado. Nenhum órgão é onisciente, sempre existem pontos em branco no conhecimento, seja a CIA, o MI6, até mesmo a extinta KGB, que tinha um contingente enorme. O caso mais famoso do século XX foi o total desconhecimento por parte da CIA sobre os eventos que levaram à queda do muro de Berlim e o consequente fim da União Soviética. O presidente americano teve de saber o que estava ocorrendo através da televisão.

A segunda falha é saber e ter de guardar para si. Isso ocorreu muito aqui mesmo, no Brasil. A Agência tinha conhecimento de algo e os entraves burocráticos impediam que ele chegasse ao Executivo. Leia-se aí o comando do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), onde uma sucessão de generais decidia, baseados em seus interesses, de suas corporações ou de seja lá o que for, o que ia ou não para a Presidência. Um exemplo relativamente recente disso foi o golpe, disfarçado de impeachment, que em 24 horas depôs um presidente do Paraguai. Aliado da Presidente Dilma, que pós facto se opôs, o que já não adiantava nada. Ocorre que no dia anterior a Abin já tinha conhecimento do que se tramava, mas seus relatórios bateram no muro do silêncio representado pelos que então comandavam o GSI.

O terceiro caso é, talvez, até irônico. Ocorre quando um órgão de informações tenta saber um pouco de tudo, sem se aprofundar em nada. Um exemplo nacional desse erro também ocorreu apenas alguns anos atrás. Foi quando foi criado o Mosaico, um sistema para acompanhar cotidianamente cerca de 400 tipos diferentes de dados. Acho que nem a monumental CIA dos anos da Guerra Fria tinha capacidade para tal. Coisas como o tamanho das safras, o índice pluviométrico, etc., coisas que os ministérios encarregados da área tinham maior condição de informar a presidência.

Aliás, esse último erro cabe tanto à Abin como à própria Presidência. Não porque tenha sido exigido exatamente isso, pelo motivo contrário. É muito comum que o Executivo nacional não produza algo conhecido como Lista de Compras. Ou seja, uma relação do que considera prioritário, quais assuntos devem ser acompanhados de perto, aqueles considerados vitais pelo governo. Dentro dos limites da razoabilidade, claro. Por exemplo, uma coisa é vigiar inimigos do regime democrático, outra os adversários do governo. No primeiro caso, por exemplo, os golpistas de 08/01 deveriam estar entre as prioridades, já os adversários do governo não, a não ser que apoiem atos ilegais. Mas se o crime já ocorreu é mais um caso de interesse da polícia do que da Inteligência de Estado, que deve atuar para prevenir atentados futuros.

O último parágrafo remete a um assunto importante: quais as áreas prioritárias para a Agência atuar nos próximos anos? Cuidar de tudo e mais um pouco seria incorrer no mesmo erro do Mosaico. E a primeira grande decisão há ser tomada, se é que não foi, é sobre a área a que deve ser priorizada, interna ou externa. A Abin tem obrigação nos dois campos, mas lhe faltam pernas. Portanto a questão inicial é ver onde colocar a maior parte dos recursos. Creio que os fatos já decidiram isso, tendo em vista os recentes atentados, a prioridade deve ser o acompanhamento de grupos interessados na derrubada violenta do governo, o que num sistema democrático também implica atacar o regime.

Mas é evidente que um organismo do porte da Agência Brasileira de Inteligência que, pelos últimos dados que disponho, teria uns 6 mil membros, não deve se limitar a isso. De acordo com inúmeras entrevistas nos últimos dez anos, pelo menos duas áreas do órgão têm de ser reforçadas:

  1. A contrainteligência, que implica não só a identificação de possíveis espiões estrangeiros no país, mas também possíveis falhas na preservação das informações sensíveis, principalmente as que interessam ao país manter sigilosas, não apenas ao governo.
  2. Vigilância sobre o crime organizado. Principalmente no exterior. Para antecipar coisas que afetem o Brasil, não substituindo a Polícia Federal, que lida com o crime propriamente dito. Aliás a diferença entre o trabalho das duas instituições é que as polícias têm de “fazer prova”, os órgãos de inteligência, fornecer conhecimento.

A esperança é que nos próximos meses a Abin irá, lentamente, mudando. Vamos ver se vai pra onde deve ou continua na atual trilha, que nunca foi demarcada muito claramente.

 

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