Múltiplas Vozes 26/04/2023

Radicalização e normalidade

O que deve preocupar, como o filme Soft & Quiet simboliza, é o fato de que pessoas radicalizadas dispostas à prática da violência costumam ser muito “normais”. Hannah Arendt diria “terrivelmente normais”

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Marcos Rolim

Doutor em Sociologia, professor do mestrado em Direitos Humanos da UniRitter e membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O filme Soft & Quiet, primeiro longa de Bruna de Araújo, é uma obra impactante, cujo suspense nos precipita em eventos trágicos motivados por um processo de radicalização ideológica. A história que interessa muito para o debate dos desafios da segurança pública em nossa época se passa em uma pequena cidade dos Estados Unidos e relata o processo de formação de uma “célula” de mulheres supremacistas brancas, identificadas com o nazismo.

Ao início do filme, o grupo de mulheres se reúne para fundar o movimento “Filhas pela Unidade Ariana”. O tema central é a “ameaça” da diversidade, especialmente racial. Na perspectiva delas, os problemas são muitos: negros, marrons, amarelos, judeus e feministas estariam tomando os espaços que eram dos americanos e da família tradicional; “o sistema” ensinaria os brancos a terem vergonha de sua história e protegeria só as minorias, criando aberrações como as quotas; movimentos como o “Vidas Negras Importam” seriam racistas, porque “todas as vidas importam”, já o ideal de “estados étnicos” assim como as posições da Ku Klux Klan (KKK) seriam alvo de “preconceito e intolerância”. As escolas estariam ensinando “coisas terríveis” às crianças e não seria mais possível tolerar isso tudo. O desafio, então, é o de se erguer e enfrentar “a infâmia”.

Emily (Stefanie Estes), a coordenadora do grupo, é professora das séries iniciais; Kin (Dana Millican) é a dona de um pequeno mercado onde trabalha Leslie (Olivia Duccardi), uma ex-detenta, e Marjorie (Eleanore Pienta) é uma trabalhadora frustrada pelo fato de ter sido preterida em uma promoção por uma colombiana.  Essas quatro integrantes do grupo dirigem-se, após a reunião, ao mercado de Kin, quando se deparam com duas irmãs de origem asiática. A partir desse momento, se observa o processo de escalonamento da violência, relatado de forma didática e, ao mesmo tempo, assustadoramente realista.

Processos de radicalização podem ser produzidos a partir de qualquer base política, ideológica ou religiosa e estarão completos quando se assume que a violência é uma forma legítima de se alcançar resultados políticos. Nem todas as pessoas radicalizadas executarão atos de violência, mas estarão prontas para legitimar esses atos. Soft & Quiet aborda esse processo no formato em que ele mais se reproduz atualmente, em todo o mundo: com grupos de extrema-direita. Os estudos sobre o fenômeno da radicalização têm mostrado o crescimento de grupos extremistas. Nos Estados Unidos, atuam hoje mais de 1.600 grupos radicalizados neonazistas (LOWE, 2019). Muitos deles envolvidos em ações violentas, crimes de ódio e em atentados de perfil terrorista. Desde os atentados às Torres Gêmeas, o número de vítimas fatais resultantes de atentados da extrema-direita nos EUA supera em muito as vítimas produzidas por grupos de perfil jihadista (MICHAEL, 2016; KURZMAN & SCHANZER, 2015). O fenômeno de ampliação dos grupos de extrema-direita se deu após a eleição de Barack Obama, identificado como “comunista” e como “muçulmano” pelos segmentos que se unificariam no trumpismo. Na Alemanha, a atuação de grupos de extrema-direita redundou em pelo menos 184 vítimas letais entre 1990 e 2015 (ASLAN & WINTER, 2013, cit. por KOEHLER, 2017).

O processo de radicalização depende do ódio, porque ele prepara e ampara a violência. Tudo se passa como se o país ou mesmo o mundo estivessem ameaçados por conta de determinadas políticas cujos proponentes passam a encarnar o “mal”. Essa visão apocalíptica que se mescla com projeções religiosas constrói também um sentido de “urgência” aos apelos por ação, o que costuma oferecer um sentido grandioso às vidas de pessoas ressentidas e com escassa capacidade crítica.

O fenômeno é antigo, mas adquiriu com as interações on-line e com os algoritmos uma dinâmica própria. Nas bolhas da Internet, os radicalizados cortam suas relações com o mundo, porque toda a informação que não seja eco é, por definição, falsa. Nesse espaço de adoecimento, vicejam planos violentos e expectativas de guerra. Ali, onde a intolerância, a misoginia, o racismo e a homotransfobia são comuns, as armas são glorificadas e a morte é uma espécie de saudação entre os “patriotas”, surgem também aqueles que se preparam para atacar escolas e matar crianças.

Há quem imagine que atos de grave violência sejam manifestações de doenças mentais. Embora pessoas com transtornos estejam presentes também entre grupos radicalizados, o que deve preocupar, efetivamente, como Soft & Quiet simboliza, é o fato de que pessoas radicalizadas dispostas à prática da violência costumam ser muito “normais”. Hannah Arendt diria “terrivelmente normais”.

 

Referências

KOEHLER, Daniel. Right-Wing Terrorism in the 21st Century: The ‘National Socialist Underground’ and the history of terror from the Far-Right in Germany.

New York, Routledge, 2017.

KURZMAN, C.; SCHANZER, D. The Growing Right-Wing Terror Threat. New York Times, 2015.

LOWE, D. Christchurch Terrorist Attack, The Far-Right and Social Media: What can we learn? The New Jurist, Leeds Back University, 2019.

MICHAEL, George. “This is War! Tom Metzger, White Aryan Resistance and The Lone Wolf Legacy”. In: Joshua B. Morgan (Ed) Focus on Terrorism, v.14,

  1. 29-62, 2016.

 

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