Múltiplas Vozes 18/01/2023

A Pedagogia da Baderna

Nos mares agitados pela ascensão do fascismo e pela crise dos ideais civilizatórios, nada mais necessário do que amarrar-nos aos mastros da institucionalidade democrática e afirmar mais uma vez: não passarão!

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, Professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do INCT-InEAC e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Se a posse para o terceiro mandato de Luis Inácio Lula da Silva representou simbolicamente o início de um processo de reconstrução nacional, pautado pela diversidade e a tentativa de enfrentamento das desigualdades estruturais que caracterizam o país, o domingo seguinte, o dia 8 de janeiro, foi a encenação do caos, da desordem e da destruição das instituições, da cultura e da democracia. Agora é preciso perguntar: quem fez isso, com qual propósito, em nome de qual objetivo, para que se possam apurar as responsabilidades políticas e as responsabilidades criminais do que ocorreu.

A construção do 8 de janeiro foi um processo que se deu ao longo não de dias ou de semanas, mas de anos. Figuras como Olavo de Carvalho, jornalistas obscuros e integrantes das castas mais altas da burocracia do Estado, como juízes, promotores e oficiais das Forças Armadas, cumpriram papel fundamental para a construção da narrativa iliberal [1], ganhando corações e mentes para a cruzada contra instituições que estariam corroídas pelos males da modernidade e vulneráveis à ameaça comunista.

Surgida no período dos governos Lula e Dilma, essa vertente ideológica se conecta, de um lado, com uma onda mundial de reacionarismo antimoderno, que leva ao poder autocratas interessados em minar as bases da democracia liberal, acabando com o equilíbrio entre os poderes, a liberdade de imprensa e a alternância no poder, com o apoio militante de economistas neoliberais. De outro, com vertentes tradicionais do pensamento político brasileiro, como o integralismo fascista e o positivismo militarista presente nas Forças Armadas desde sempre.

Por injunções históricas e senso de oportunidade aguçado, Jair Bolsonaro se tornou o representante deste movimento no Brasil, dando a ele características ainda mais sombrias, como a associação com milícias urbanas, policiais corruptos e violentos e produtores rurais e garimpeiros interessados no desmatamento e na rapina de áreas indígenas e de preservação ambiental. O que melhor representa a heterogeneidade destes apoios é a defesa do armamento da população civil, caminho para a dilapidação da ideia de comunidade e a afirmação de uma ideia de liberdade elevada a princípio absoluto e inegociável.

A transformação desse conjunto de questões em ideário e movimento se deu com a utilização das mídias sociais, com cursos online, produtoras de conteúdo audiovisual, comunicadores monetizados pela combinação de algoritmos com radicalização política, tudo potencializado com a constituição do famoso “gabinete do ódio”. Acrescente-se a tudo isso o papel da imensa rede de templos neopentecostais nos quais a militância política de extrema direita se tornou prioridade, demonizando a esquerda e consolidando a “agenda de costumes”, e já temos a conformação de um campo capaz de influenciar milhões de eleitores, e até de mobilizar alguns milhares para se manterem atuantes, mesmo após a derrota eleitoral, acampados em frente a quartéis amistosos e prontos para uma cruzada contra o Tribunal Eleitoral, o STF, o novo Presidente, o Congresso Nacional e a imprensa livre, todos “contaminados” pelos vírus da corrupção e do comunismo.

Bolsonaro apostou desde sempre na narrativa da fraude eleitoral, que permitiria virar a mesa em caso de derrota. Mas apostou também em ganhar a eleição, aparelhando o Estado (vide Polícia Rodoviária Federal), comprando votos (auxílio emergencial, redução do preço dos combustíveis, auxílios direcionados a caminhoneiros etc.), e disseminando mentiras e desinformação via redes sociais e aplicativos de mensagem.

O dia 8 de janeiro, que irá para a História como o dia da infâmia (ou a revolta dos manés) mostrou até onde pode chegar a radicalização e a barbárie. Sobressaíram entre os até agora fichados pela polícia homens e mulheres de meia-idade, parte deles com condenações criminais, militares reformados e policiais aposentados, trabalhadores autônomos de áreas rurais, pequenos empresários, etc.. Ou seja, representantes de um lumpenbolsonarismo com muito pouco a perder, e muito a ganhar em caso de uma sublevação bem-sucedida.

Se mais nenhuma alternativa teve qualquer viabilidade no processo eleitoral, apesar dos vários chamamentos por uma “Terceira Via”, e Lula se consolidou e venceu apesar de tudo, é porque era o único que podia contrapor às narrativas do ódio e do individualismo bolsonarista a narrativa de uma vida pública: o nordestino pobre que foge da miséria e faz a vida em São Paulo, ingressa na militância sindical e assume a liderança na construção do maior partido de esquerda da América Latina, chega por duas vezes à Presidência, com governos de coalizão marcados pelo crescimento econômico e a distribuição de renda, elege a sucessora, depois impedida por um golpe parlamentar, é acusado, julgado e condenado por um juiz parcial, vai preso sem provas e sem trânsito em julgado, fica um ano na prisão e é liberado pelo reconhecimento na nulidade do processo. As críticas e dificuldades das gestões petistas não foram suficientes para desmerecer uma trajetória como essa, e em torno dela se construiu a grande frente democrática, com partidos e sociedade civil, para enfrentar a deriva autoritária.

Necessário destacar o papel do Tribunal Superior Eleitoral, e especialmente de seu presidente, ministro Alexandre de Moraes, tanto na viabilização do processo eleitoral regular, derrubando a desinformação, sempre que identificada, a pedido dos partidos de oposição, monitorando e punindo as lideranças da desinformação nas redes,  garantindo uma resposta rápida e eficaz para a redução dos danos dos métodos ilícitos de campanha. E depois da eleição, viabilizando a posse dos eleitos e rechaçando a chicana de pedidos como o do PL, para a invalidação de milhares de urnas eletrônicas, sem qualquer prova ou critério. Fundamentando as decisões, a tese da democracia militante para o enfrentamento da ameaça autoritária.

Depois do 8 de janeiro, foi graças à intervenção federal na segurança do DF e às decisões do ministro Alexandre de Moraes que os baderneiros golpistas foram presos e passaram a responder processo criminal, entre os quais o ex-ministro da justiça de Bolsonaro, e então secretário de segurança do DF, o delegado de polícia federal Anderson Torres, que depois se veio a saber, graças ao deferimento do pedido de busca e apreensão da Polícia Federal, que guardava em sua casa a minuta da institucionalização do golpe, pronta para a assinatura do agora ex-presidente.

A resposta à tentativa de golpe de Estado, cada vez mais caracterizada, porque envolvia não apenas a destruição de prédios em Brasília, mas a inviabilização do governo eleito, envolve questões de curto, médio e longo prazo, e a ação dos três poderes e da sociedade civil. Mas há um caminho central em torno do qual a resposta terá que ser dada: instituições funcionando e cumprindo o seu papel, sistema de freios e contrapesos, autonomia dos mecanismos de controle, recomposição de protocolos e cadeias de comando nas polícias militares e nas Forças Armadas. Não teremos uma ampla reforma ou uma refundação das polícias ou do Exército, e sim uma concertação em torno de padrões profissionais e burocráticos de funcionamento em democracia. Não há outro caminho, apesar das ilusões voluntaristas que sempre surgem nesses contextos. Não serão alteradas mentalidades arraigadas. O que se espera é que condutas de sublevação e apoio à desordem dentro das forças de segurança e defesa sejam sancionadas, dentro da lei.

Para tanto, importante destacar o papel que vem cumprindo o ministro Flávio Dino, que, se de um lado foi iludido e sabotado pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal nos atos do dia 8 de janeiro, de outro agiu rapidamente para propor ao presidente a intervenção federal poucas horas depois do início da baderna, e desde então vem atuando com equilíbrio e moderação na condução da crise. A escolha política da manutenção da Justiça e Segurança Pública em uma mesma pasta ganhou maior solidez, como bem argumenta Fábio Sá e Silva em recente publicação, não por ser a melhor opção técnica, mas pela importância política de um ministério da Justiça robusto para a condução dos primeiros meses de governo em terreno minado pelo golpismo e a contaminação das polícias.

No momento em que as práticas de subversão da verdade permitem a um ex-presidente fomentar o golpe nas redes e declarar que nada tem a ver com isso na imprensa, em que a tradição de criminalização da vítima é atualizada por um governador de estado que insinua que o governo federal deixou de agir para evitar a baderna e utilizá-la em benefício próprio, em que “garantistas de ocasião” se apresentam em artigos na imprensa para oferecer seus serviços jurídicos aos golpistas ameaçados pela prisão e a responsabilização criminal, e em que as redes bolsonaristas se dividem entre o aplauso envergonhado à baderna e a culpabilização de “esquerdistas infiltrados”, é preciso renovar o compromisso democrático, com a defesa do devido processo contra os golpistas e da recomposição das relações institucionais entre as forças de segurança e defesa e o governo civil. Afinal, nos mares agitados pelo ascenso do fascismo e pela crise dos ideais civilizatórios, nada mais necessário do que amarrar-nos aos mastros da institucionalidade democrática e afirmar mais uma vez: não passarão!

[1] Democracia iliberal, democracia de baixa intensidade,  democratura ou democracia guiada, é um sistema de governo no qual, embora eleições ocorram, os mecanismos de controle sobre as atividades daqueles que exercem poder executivo são minados, por conta da falta de liberdades civis e da quebra do equilíbrio entre os Poderes. Em um discurso de 2014, após a reeleição, Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, descreveu o futuro do seu país como um “Estado iliberal”. Na sua interpretação, o “Estado iliberal” não rejeita os valores da democracia liberal, mas não os adota como elemento central da organização do Estado.

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