Múltiplas Vozes 30/11/2022

Comunidades Terapêuticas: novos modos de governar os indesejáveis

As políticas de segurança pública e penais têm que lidar com o enfrentamento ao comércio de drogas ilícitas, não com os usuários de drogas

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Ana Cláudia Camuri

Doutora em Psicologia Social e pesquisadora do Laboratório de Gestão de Políticas Penais - LabGEPEN/UnB

Cada país produz diferentes modos de governar sua população conforme o jogo de forças que está em ação em determinados períodos históricos. Ao historicizarmos brevemente o que se chama hoje de Comunidade Terapêutica lembramos que o termo emerge na Inglaterra, na década de 1950, com Maxwell Jones que, embalado por forças revisionistas da psiquiatria, o cunhou junto com a proposta de um novo método de tratamento de pessoas em sofrimento mental que priorizaria o convívio comunitário ao invés do internamento manicomial. Posteriormente, nos EUA, identificamos a apropriação do termo, não necessariamente do método, para utilizá-lo no tratamento de pessoas que faziam um uso considerado problemático das drogas. E o Brasil, mantendo sua cultura de base colonizada, importa essas ideias estrangeiras em idos de 1970, as multiplica nos anos de 1990 e as incrementa nos anos 2000.

Desde então, alguns grupos se apropriaram do termo para usá-lo a serviço de novos modos de governar determinados segmentos populacionais que atrapalham o fluxo ligeiro e volátil do capitalismo. Especialmente a partir de 2010 esse tipo de estabelecimento privado passa a receber financiamento por parte do Estado e a ser inserido paulatinamente nas políticas de saúde, assistência social, justiça, segurança pública e cidadania sem, no entanto, estar definido por nenhuma delas ou por todas elas de forma intersetorial e interinstitucional, colocando-o numa zona de indeterminação em termos de gestão de uma política pública e num certo limbo jurídico, características que possibilitam que elas sejam usadas para práticas criminosas, driblem as fiscalizações por parte do controle social e as responsabilizações por parte dos órgãos competentes.

O funcionamento da maioria dessas Comunidades é muito ilustrativo do cenário de forças globais contemporâneas, que poderia ser desenhado da seguinte forma: bipolarizado, racista, machista, misógino, moralista, punitivista, fascista, higienista, promotor de desigualdade social e econômica, intolerante à diversidade de todo tipo (étnica, racial, gênero, opção afetivo-sexual, credo religioso e ideologias políticas).

Nessa paisagem macabra de virada de século, vemos, não sem pesar, o desmantelamento das políticas públicas de saúde, educacionais e assistenciais e o incremento das de segurança pública e penais (aumento do encarceramento em massa e das práticas de tortura), levando-nos ao topo do pódio dos países que mais matam e/ou deixam morrer pela afirmação de uma “necropolítica”, como nos ensina Achille Mbembe.

Em estados como o Rio de Janeiro, tem-se ainda o grave problema da militarização da execução penal e das forças policiais. Somado a isso, existem os grupos armados chamados de “milícias” – dispositivo antigo, mas que ganha contornos singulares que falam de nossos tempos atuais, nos quais esses grupos contam com a conivência dos governantes locais, portanto, têm a chancela do Estado. Além desses problemas, o Rio de Janeiro conta com o crescimento das igrejas evangélicas ou pentecostais, assim como com a presença de seus representantes nos quadros de gestão dos governos estadual e municipais, favorecendo o direcionamento de verbas para as Comunidades Terapêuticas, desrespeitando o princípio da laicidade estatal.

Todas essas forças em circulação e tensão se aliam a outras formas de eliminação dos indesejáveis, ou seja, a necropolítica também se apresenta quando os governos deixam sua população ser ceifada pela doença- tecnologia milenar e mundial e que atualmente se instrumentalizou pela pandemia da Covid-19. Essa tecnologia é propulsora de outras que veem a reboque com a também antiga, mas nunca totalmente resolvida: a fome. Quem não morre antes de ser preso, seja por doença, fome ou assassinato, vai acabar morrendo em alguma prisão.

Ao lermos o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas (CFP/MNPCT/MPF), de 2017, o Relatório Imposição da fé como política pública: as comunidades terapêuticas no Rio de Janeiro (CESeC) e o Relatório Financiamento público de comunidades terapêuticas brasileiras entre 2017 e 2020 (Conectas e Cebrap), ambos de 2022, vemos claramente a convergência dessas forças nefastas e como esses espaços se tornaram uma nova versão do manicômio-prisão. Esses levantamentos trazem informações que demonstram como o incentivo financeiro injetado pelas três esferas governamentais- sobretudo desde 2010, articulado com o poder exercido por organizações religiosas, e por vezes, grupos armados que as controlam (e o território onde estão localizadas), multiplicaram o número de estabelecimentos desse tipo e a quantidade de pessoas supostamente acolhidas neles, incrementando antigas tecnologias de governo de parte da população visando o controle de suas condutas e de suas vidas.

Nas Comunidades Terapêuticas de hoje o crime de sequestro ganha o nome de resgate ou remoção; privação de liberdade se chama acolhimento; internação involuntária e compulsória passa a se denominar adesão voluntária; recebem financiamento estatal e pagamento dos familiares dos usuários, mas os trabalhadores são, em sua maioria, voluntários e sem qualificação técnica nas áreas de saúde ou assistência social; trabalho análogo à escravidão se intitula laborterapia; práticas punitivas disciplinares, maus tratos e até tortura são entendidos como pedagógicos; a abstinência de substâncias e sexo é um dos pilares do suposto tratamento, juntamente com a práticas espirituais/religiosas.

Esse dispositivo corrobora com o desmantelamento pelo qual passam o SUS, o SUAS, assim como com os retrocessos normativos e legais que atravessam a política de saúde mental e a política de enfrentamento às drogas (Lei n º 13.840/2019), em total desrespeito à reforma psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001) e a todas as normativas nacionais e internacionais existentes no campo dos direitos humanos e do direito à saúde, as quais orientam que o tratamento de pessoas em uso problemático de álcool e drogas tem que ser compreendido em sua dimensão multifatorial que considere aspectos individuais, mas também os sociais, culturais e econômicos que compõem a existência de cada sujeito-cidadão que é usuário das políticas públicas. Mais do que nunca é necessário afirmarmos que as formas de cuidar dessas pessoas têm que estar inseridas prioritariamente nas políticas de saúde pública regidas pelos princípios tão bem delimitados pelo Sistema Único de Saúde (Lei nº 8080/1990): universalidade, equidade e integralidade, e não relegadas a entidades supostamente religiosas, pela lógica manicomial-asilar ou pautadas pelas políticas de segurança pública e penais. Estas duas últimas têm que lidar com o enfrentamento ao comércio de drogas ilícitas, e não com as pessoas usuárias de drogas. Mas parece que, em nosso país, muitos governantes e até mesmo parte da sociedade não conseguem mais ver essas diferenças em função de todo um processo de desumanização pelo qual passam os pobres, os negros, as pessoas em sofrimento mental e o usuário de álcool e drogas.

 

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