O que foi Notícia 13/10/2022

O perdão de Biden por porte de cannabis e o atraso do debate sobre drogas no Brasil

Neste mês, o presidente dos EUA, Joe Biden, editou decreto que concede perdão a condenados por simples posse de marijuana sob leis federais. A medida chega com atraso, já que o porte e uso de cannabis já foram legalizados pela maioria dos estados que compõem a federação norte-americana

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Fabio de Sa e Silva

Professor Assistente de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos Brasileiros, Universidade de Oklahoma, onde dirige o Centro de Estudos Brasileiros e é membro do Consórcio de Estudos Carcerários. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Neste mês de outubro, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, editou decreto que concede perdão a condenados por simples posse de marijuana sob leis federais.

A medida chega com atraso, já que, como o próprio Biden reconheceu na coletiva em que anunciou a decisão, o porte e uso de cannabis já foram legalizados pela maioria dos estados que compõem a federação norte-americana. Trata-se, porém, de passo importante na superação, nos Estados Unidos, da guerra às drogas iniciada por Nixon e que, como várias pesquisas demonstram, foi um dos principais fatores por trás do encarceramento em massa no país, com impacto desproporcional sobre negros e latinos.

Ironicamente, o perdão anunciado não terá efeito de desencarceramento, já que não há nenhum indivíduo cumprindo pena por porte simples de cannabis em estabelecimentos penais federais dos Estados Unidos. No entanto, a medida terá efeitos importantes sobre alguns dos efeitos colaterais do encarceramento, tais como a dificuldade de condenados ou egressos de encontrar emprego em função de antecedentes criminais ou a necessidade de que paguem dívidas civis com a justiça contraídas por meio de acordos de não persecução penal.

Ademais, a medida sinaliza para revisão de políticas federais antidrogas. Na mesma coletiva em que anunciou o perdão, Biden conclamou governadores a fazerem o mesmo gesto, além de solicitar aos Ministérios da Justiça e da Saúde do país (equivalentes) que iniciassem estudos para a potencial reclassificação da cannabis, que hoje é classificada como equivalente à heroína e ao LSD (narcóticos de nível 1, que não teriam uso médico e teriam potencial para abuso). A reclassificação teria efeitos análogos à descriminação da substância.

O perdão de Biden suscitou reações de alguns republicanos, que acusam a medida de eleitoreira. A leitura é a de que, juntamente com a anistia de dívidas estudantis, o perdão de delitos por porte simples da cannabis seria tentativa de mobilizar eleitorado negro e latino em ano de eleições para a renovação parcial do Congresso. No âmbito dos estados, porém, republicanos de linha mais extremista (MAGA) enxergaram na medida uma oportunidade para mobilizar suas próprias bases. Na Pensilvânia, Mehmet Oz criticou democratas por serem “suaves contra o crime,” prevendo que, em caso de vitória, seu oponente John Fetterman descriminaria não apenas a cannabis, mas também drogas mais pesadas.

A verdade é que o perdão de Biden tem amplo lastro não apenas nas políticas adotadas por uma massa crítica de estados, mas também na opinião pública e no comportamento das elites política do país. Até agora, 37 estados mais o Distrito de Columbia já legalizaram o uso médico de marijuana e 19 estados já legalizaram o uso recreativo dessa substância. Em abril, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou a descriminação da cannabis (o projeto encontra-se parado no Senado) e, em pesquisa GALLUP de 2021, nada menos que 68% dos norte-americanos disseram apoiar essa medida (o recorde na série histórica).

Ao contrário do Brasil, o apoio à descriminação da cannabis nos Estados Unidos alcança tanto liberais quanto conservadores. Boa parte dos estados que promoveram alguma forma de descriminação são governados por republicanos. E, no mesmo dia em que Biden editou o decreto de perdão, 2 deputados lhe escreveram, pedindo que, por uma questão de coerência, ele ordenasse a interrupção de operações contra plantio e comércio de cannabis em territórios indígenas, onde prevalece lei federal: ambos são do Partido Republicano.

Da mesma forma, com exceções cada vez mais marginalizadas (os republicanos MAGA), o debate sobre descriminação da cannabis nos Estados Unidos não se dá no contexto de guerras culturais, mas sim de desenvolvimento econômico. Nos Estados onde ocorreu, a descriminação gerou uma indústria bilionária, a qual poderia alcançar ainda maior dinamismo com a descriminação federal, operando na bolsa norte-americana e disputando recursos federais para pesquisa e desenvolvimento. O perdão de Biden (ele mesmo, aliás, um dos que patrocinaram a criminalização, no passado) é, também, informado por essa inflexão.

Num país em que mais de 41% do eleitorado em primeiro turno pede a intensificação da guerra às drogas a fim de evitar que viremos “uma Venezuela” ou “uma Nicarágua”, valeria a pena prestar atenção nos caminhos que, não é de agora, o “irmão do norte” vem trilhando. Isso ajudaria a mostrar o que é, de fato, ideologia, e o que é aprendizado histórico, uso de evidências para embasar políticas públicas, e até mesmo um pouco de bom senso.

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