Redução de 24% nos feminicídios em São Paulo e 43 vidas preservadas: entenda o que esses números revelam
Diminuição dos números desse tipo de crime no Estado influiu no resultado nacional. Sem esse fator, o Brasil teria apresentado aumento de 1% na quantidade de feminicídios
Valeria Scarance
Coordenadora do Núcleo de Gênero do MPSP; professora da PUC-SP; autora do livro "Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efetividade" (Editora Juspodivm)
O levantamento Violência contra a mulher em 2021, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado no emblemático mês de março, revela os índices de feminicídio em nosso país:
- 2.451 feminicídios durante a pandemia
- 1.351 feminicídios em 2021, com queda de 3%
- um feminicídio a cada 7 horas
- 1.26 mortes/100.000 habitantes do sexo feminino
Os dados foram obtidos a partir de boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil em 27 Unidades da Federação, com grande variação nos índices ao redor do país. Entre 2020 e 2021 constataram-se:
- elevação dos feminicídios em Tocantins em 144,4%, Rio Grande do Norte em 53,8% e o Distrito Federal em 47,1%
- redução dos feminicídios em São Paulo ( -24%), Roraima (-55,6%), Amapá em (-55,6%), Mato Grosso em (-30,6%), Alagoas (-28,6%), Bahia (-22,8%), Paraíba (-14,3%), Mato Grosso do Sul (-14%), Maranhão (-13,8%), Santa Catarina (-3,5%) e Pará (-1,5%).
Em São Paulo, 43 mulheres deixaram de morrer em 2021. Essa redução de 24% nos feminicídios influiu no resultado nacional pois, sem São Paulo, o Brasil apresentaria aumento de 1% nos feminicídios.
O que teria provocado essa significativa redução das mortes de mulheres em São Paulo? É o que o presente artigo se propõe a esclarecer.
Feminicídio é a morte da mulher por ser mulher. Em regra, esse crime acontece no contexto afetivo, doméstico e familiar, como capítulo final de uma história de violência não interrompida.
Há duas denominações – femicídio e feminicídio – nas legislações que tratam da morte de mulheres. Embora os dois conceitos carreguem a ideia central da morte da mulher como um crime de ódio, o conceito de feminicídio traz um elemento de política criminal: a responsabilidade do Estado que se omite diante da morte de mulheres.
As ações do Estado e sociedade influem diretamente na repressão e – em especial – na prevenção das mortes.
Essa prevenção do feminicídio pode se dar de forma coletiva ou individual. Sob o aspecto individual, ocorre mediante a identificação de fatores de risco (separação recente, comportamentos de controle, posse de armas e outros) e fatores de proteção (existência de rede de apoio, acesso a recursos financeiros, medidas protetivas). No Brasil, existe o Formulário Nacional de Avaliação de Risco do CNMP-CNJ aprovado pela Resolução nº 05, com blocos de informações sobre o histórico de violência, autor e vítima. A atuação individual nos casos de violência, com identificação de fatores de risco e a proteção da mulher, é capaz de evitar o feminicídio na maioria dos casos.
Em São Paulo, a pesquisa Raio X do Feminicídio revelou que 97% das vítimas de feminicídio tentado ou consumado em São Paulo entre 2016 e 2017 não tinham medidas protetivas e, de 124 óbitos consumados, apenas 5 vítimas tinham registrado BO.
A prevenção coletiva ocorre por meio de políticas públicas e ações afirmativas, como forma de se assegurar o pronto atendimento e proteção da vítima. Além do aspecto da conscientização geral, é fundamental que se adotem ações estratégicas para facilitar o acesso de mulheres aos serviços e delegacias.
Nos anos de 2020 e 2021, a pandemia trouxe uma conscientização geral quanto à violência doméstica e familiar. Com todas as pessoas confinadas em casa, ficou mais difícil se omitir em relação à violência da casa vizinha. Além disso, havia o receio de que os índices aumentassem graças a fatores de risco como maior controle do parceiro, isolamento, consumo de álcool/drogas e problemas financeiros, repetindo-se o fenômeno de outros países acometidos pelas mazelas do COVID 19.
Em São Paulo, desde o início da pandemia, intensificaram-se as ações para traçar estratégias, melhorar o atendimento e facilitar a denúncia por parte de vítimas e pessoas da população, destacando-se as seguintes:
- criação de Gabinete de Crise pelo Procurador Geral de Justiça no âmbito do Ministério Público para enfrentar as situações decorrentes da pandemia, com um Grupo de Trabalho específico de Violência Doméstica e Familiar;
- ampliação do Projeto Guardiã Maria da Penha do Ministério Público para a fiscalização de medidas protetivas, com atendimento de 6.877 vítimas nos anos de 2020 e 2021, totalizando 75.298 visitas às vítimas;
- aumento do número de medidas protetivas deferidas em favor das vítimas e de prisões em flagrante. Já no primeiro mês de pandemia constatou-se aumento de 29,2% das medidas protetivas, de 51,4% das prisões em flagrante por violência doméstica e familiar, sendo 16,6% das prisões em flagrante por descumprimento de medidas protetivas (MPSP, Nota Técnica RAIO X da violência doméstica durante isolamento – Um retrato de São Paulo);
- inauguração da Casa da Mulher Brasileira em novembro de 2019 para atendimento de mulheres de forma humanizada, com concentração de serviços e órgãos em um só local e a possibilidade de se registrar BO e solicitar medidas protetivas de plano. Em 2020, houve 7.233 atendimentos e em 2021 esse número aumentou para 7.850;
- Boletim de Ocorrência Eletrônico para violência doméstica e familiar contra a mulher. Criado em 2020, o BOE facilitou o registro da ocorrência por parte de vítimas, que não precisam se deslocar até uma delegacia. Após sua criação, o BOE foi aprimorado para incluir avaliação de risco e a análise do caso por uma delegacia “Online”. Em 2020, foram registrados 17.519 BOEs e em 2021 o número de registros quase dobrou: 31.884 BOEs;
- ampliação das Delegacias de Defesa da Mulher e do atendimento 24 horas. Atualmente, há 138 DDMs no Estado, sendo 11 com funcionamento 24 horas.
Estatisticamente, sabe-se que as mortes acontecem quando a mulher fica isolada, sem atendimento ou proteção. Por outro lado, a mulher em situação de violência que rompe o silêncio está potencialmente salva.
Políticas públicas e proteção individual são as duas mãos que, juntas, são capazes de erguer – e salvar – uma mulher em situação de violência.