Livio José Lima e Rocha
Investigador da Polícia Civil do Estado de São Paulo desde 1999. Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Paulista, pós-graduação lato sensu em Direito Penal pela Faculdade Metropolitanas Unidas e mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV-SP. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Em 2015, fizemos um levantamento dos editais para o concurso público de delegado de polícia para, entre outras coisas, verificar a adoção de ações afirmativas raciais, como as cotas de vagas para população negra (pretos e pardos, no critério do IBGE). Embora fizesse mais de dez anos da adoção de ações afirmativas na UnB (2003) e quase um ano da Lei Federal nº 12.990/2014, que institui a reserva de 20% das vagas dos concursos públicos do governo federal à população negra, a adoção dessas ações afirmativas ainda era tímida: apenas 5 das 28 unidades federativas (para fins de comparação, equiparamos o governo federal a uma unidade federativa para, assim, contabilizar o concurso de delegado da polícia federal).
Este ano, realizamos novamente tal levantamento, com a finalidade específica de verificar a adoção de ações afirmativas nos editais de concurso público para as polícias, tanto civil quanto militar. No caso do governo federal, tomamos a liberdade de equiparar o Exército Brasileiro a uma polícia militar, pois assim teríamos dois editais por unidade federativa.
Metodologicamente, procuramos responder as seguintes perguntas: qual foi o ano do último edital aberto para cargos da polícia civil no Estado (polícia federal, no caso da União)? Qual foi o ano do último edital aberto para cargos da polícia militar no Estado (Exército Brasileiro, no caso da União)? Havia previsão de ações afirmativas no edital, sim ou não? O Estado (ou União) tem legislação de ações afirmativas para concursos públicos? Em caso de haver reservas de vagas com base em raça, qual o percentual?
Antes dos achados, cabe uma breve contextualização desses levantamentos. Mesmo que não exista algum órgão que cobre diretamente essa representatividade no Brasil, a falta dessa representatividade nas forças policiais brasileiras chama a atenção, principalmente ao vermos que os dados publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em especial o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, indicam que, num país onde a população negra é 54% da população total, conforme o IBGE, as polícias, em média, possuem apenas 34% dos seus efetivos compostos por pessoas negras, mas tais policiais são mais de 65% dos que foram mortos violentamente em 2019.
Considerando que ações afirmativas, como as reservas de vagas em certames públicos, são um meio constitucionalmente válido de corrigir isso, como já se manifestou o Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade 41 de 2017, vejamos alguns achados do nosso levantamento.
O ano do edital de abertura do concurso variou ente 2014 e 2022. Dos 28 (26 Estados, Distrito Federal mais a União), 16 lançaram edital sem previsão de ação afirmativa racial. No entanto, apenas 10 dos 28 não possuem legislação sobre ações afirmativas em concurso públicos. A diferença numérica está nos Estados que publicaram suas legislações sobre ações afirmativas em concursos públicos após a publicação dos últimos editais.
Sobre o percentual de reservas de vagas, a média costuma refletir a citada lei federal, que estabeleceu em 20%. Como destaque, a Bahia, onde a população é 81% negra, estabelece o maior percentual de reserva de vagas, de 30%. No Rio Grande do Sul, o percentual de reserva de vagas para a população negra, por lei estadual, deve ser o mesmo que for constatado no IBGE mais recente: no edital da Brigada Militar de 2021, o percentual foi de 16%.
Esse levantamento é só um ponto de partida para outras perguntas que ainda não temos dados para responder: no ritmo dos concursos com ações afirmativas realizadas, quanto tempo até as polícias terem o efetivo proporcional de pessoas negras? Esse acréscimo trazido pelas ações afirmativas teve reflexo nos cargos e posições de comando dentro das polícias? É possível notar o impacto nas relações das polícias com as cidadãs negras onde existem essas ações afirmativas?
O que já podemos afirmar, com esses dados, é que as ações afirmativas não têm o condão de, isolada e repentinamente, extinguir o racismo organizacional, institucional ou estrutural nas polícias do Brasil. As políticas públicas de ações afirmativas, bem como os estudos nacionais e internacionais sobre o tema, chegam à mesma conclusão: qualquer ação que possa alterar esse quadro é melhor do que manter a inércia. A inércia nunca solucionou problemas públicos, inclusive o racismo.