Multiplas Vozes 21/12/2022

Universidade da Polícia ou Polícia da Universidade?

Chamo a atenção para que não limitemos a crítica dos acontecimentos recentes envolvendo a PRF a uma “má gestão”. Seja uma gestão incompetente ou mesmo perversa, ela somente conseguirá capturar uma instituição quando não houver mecanismos adequados para impedir essa captura

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Páris Borges Barbosa

Policial rodoviária federal, mestre e doutoranda do PPGSD/UFF, pesquisadora do INCT/InEAC e da Fundação Perseu Abramo, ativista da RENOSP LGBTQIA+

Em 2019, por meio de uma mera alteração de nomenclatura, o Decreto nº 9.662 transformou a Academia Nacional da Polícia Rodoviária Federal (ANPRF) na Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária Federal, ou, simplesmente, UniPRF. A autoproclamada universidade foi festejada pela alta gestão da PRF como um avanço na qualidade da formação e aperfeiçoamento dos policiais. Mas assim como uma cadeira não deixa de ser uma cadeira apenas porque passamos a chamá-la de mesa, a UniPRF também não experimentou mudanças ontológicas, em sua essência, apenas por trocar o letreiro que ostenta na entrada do prédio em que está sediada. Talvez esta afirmação não seja precisa. Afinal, ao longo dos últimos quatro anos, houve sim mudanças importantes nos métodos de ensino utilizados para formar e aperfeiçoar os policiais, no caso, retrocessos importantes.

A criação de uma Universidade dentro da estrutura organizacional de uma força policial é uma manifestação de fenômeno apontado por Renato Sérgio de Lima, no qual se tenta “reivindicar o monopólio policial do ensino, da pesquisa e da discussão sobre segurança pública.” Policiais que veem com desprezo e desconfiança a produção científica de conhecimento a respeito de sua área de atuação profissional ambicionam poder diplomar seus próprios “cientistas” com títulos de Mestres e Doutores e assim disputar a autoridade sobre o debate acerca da segurança pública. Em discursos proferidos pelo Diretor Geral da PRF, Silvinei Vasques, é possível escutá-lo dizer que: “Precisamos combater o discurso ideológico sobre segurança pública que vem das Universidades”; e que “Quem entende de segurança pública é o policial!”. Seguindo esse raciocínio do Diretor Geral, ouvimos com frequência nas salas de aula da UniPRF instrutores se referirem a uma enorme gama de cientistas que estudam fenômenos relacionados a mercados ilícitos, a violência, as relações sociais e institucionais, a seletividade policial entre outros temas como “especialistas em segurança pública”, expressão enunciada sempre em tom de ojeriza e expressões faciais de repulsa.

O que se viu acontecer de fato após a criação da UniPRF foi uma militarização do ensino. No currículo pedagógico, disciplinas como “direitos humanos”, “relações humanas” e mesmo “ética” foram totalmente suprimidas ou substituídas por algumas poucas palestras ofertadas na modalidade de ensino a distância. A supressão desses conteúdos foi justificada com o argumento de que estariam presentes de forma transdisciplinar. Porém, é suficiente acompanhar algumas aulas para notar que o próprio vocabulário dos instrutores denuncia o oposto. Termos reificados como “bandido”, “mala” e “vagabundo” circulam livremente, ditos também por discentes sem que haja problematização por parte dos docentes. Por outro lado, a disciplina “Noções de Comando e Controle” chama a atenção para a forma como ensina os alunos a marcharem em forma e se manterem alinhados em posição de sentido. A justificativa dada para a existência dessa disciplina é a necessidade do aluno aprender a ter “postura de policial” e “voz de comando”, que seria uma forma de controlar as impressões que seu corpo transmite. Acredito porém que é nos momentos de convívio entre as aulas que o processo de militarização do ensino fica mais evidente. Várias vezes no dia, o curso inteiro entra em formação para receber informações da coordenação. Os alunos estão sempre meticulosamente uniformizados, inclusive nos cabelos, raspados com máquina nos homens e presos com redes e coques nas mulheres. O deslocamento das turmas entre os locais de aula é feito sempre correndo em formação de tropa, entoando versos que são cantados pelo “xerife” e repetidos em uníssono pelos demais sobre honra, bravura, força, superação, orgulho, patriotismo, fé e outros valores. Falhas e gafes em relação aos procedimentos marciais são “pagas” com flexões de braço.

Apesar de se autointitular “Universidade”, a UniPRF pode, com ressalvas, ser definida hoje como uma Escola de Governo. Faço ressalvas, pois não existe uma lei ou decreto próprio que assim a defina e portanto seu status é sujeito a questionamento. Para garantir o reconhecimento da UniPRF como um instituto de Ciência e Tecnologia, chegou-se a propor o envio de uma comitiva de policiais uniformizados e armados para a porta do CNPq. A fim de alcançar o almejado reconhecimento do MEC, e atender ao princípio da indissociabilidade do ensino da pesquisa e da extensão, foi criada na UniPRF uma Divisão de Pesquisa Desenvolvimento e Inovação (DPDI) no final do ano de 2020, da qual fui chefe substituta. A nova divisão de pesquisa seria a responsável por publicar uma revista científica semestral, organizar grupos de pesquisa, planejar eventos acadêmicos como congressos e seminários, firmar parcerias com universidades públicas para a realização de pesquisas de interesse mútuo, entre outras atribuições semelhantes a de uma Pró-Reitoria de Pesquisa tal qual em uma Universidade Pública. Não era possível, contudo, contornar as contradições irreconciliáveis entre o desejo de controlar o debate sobre segurança pública e ter no seio da própria instituição uma divisão dedicada à legítima produção científica. A equipe editorial da revista científica logo percebeu que seu papel era somente teatral e que as decisões editoriais seriam tomadas pela Direção Geral e pela Coordenação da UniPRF. Assim, artigos de cientistas renomados nas áreas da Antropologia e da Saúde foram rejeitados e a revista inteira foi cancelada antes de sua primeira edição. A intenção era publicar apenas artigos de policiais. Da mesma forma, foram cancelados convites para palestrantes externos, que iriam participar de seminário na UniPRF, na véspera do evento, causando prejuízos aos cofres públicos com passagens aéreas não utilizadas. Um dos episódios mais explícitos da cooptação do discurso científico na UniPRF se deu quando o Coordenador Geral, ao ponderar sobre a autorização para executar uma pesquisa referente à saúde mental dos alunos, indagou desconfiado à equipe da DPDI o que se pretendia descobrir com aquilo, ao qual não coube outra resposta: somente realizando a pesquisa para saber!

Em que pese todo o exposto, chamo a atenção para que não limitemos a crítica dos acontecimentos recentes envolvendo a PRF a uma “má gestão”. Seja uma gestão incompetente ou mesmo perversa, ela somente conseguirá capturar uma instituição quando não há mecanismos adequados para impedir essa captura. No caso da UniPRF, ficou evidente que o seu desenho institucional concentrou poderes nas mãos da alta gestão, permitindo que pessoas estranhas aos campos do ensino e da pesquisa tomassem decisões de cunho científico e pedagógico. Talvez um modo de impedir que algo assim aconteça novamente seria elaborar para a UniPRF um regimento interno que garanta sua autonomia didático-científica e crie um Conselho de Ensino responsável por estabelecer diretrizes pedagógicas, deixando para o Coordenador ou Diretor da UniPRF apenas a gestão administrativa burocrática. Seria interessante reservar assentos nesse Conselho de Ensino  para docentes e pesquisadores externos à PRF, indicados por instituições dedicadas ao estudo da segurança pública, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

A distinção entre Instituição de Estado x Instituição de Governo vem sendo usada como chave de interpretação para explicar casos como o da PRF. Ao se declarar que a PRF é uma Instituição de Estado, espera-se que as suas práticas voltem às balizas republicanas. Contudo, assim como chamar uma cadeira de mesa não a torna uma mesa, a sedimentação de uma Instituição de Estado depende de mais do que a sua mera enunciação. Certamente serão necessárias modificações mais profundas do que aquelas advindas apenas da troca de gestores.

 

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